Por Ana Paula Mazzuco
O mito que o sujeito relata
Parte de uma realidade psíquica subjetiva
Aos analistas interessa a escuta da ficção
Para outros se trata de um discurso sem noção
Mas… O inconsciente é vacilante, ético e imoral
O neurótico sofre por ter se submetido ao interdito
À lei fundamental
O relato em análise é uma confissão basicamente
O “pecado” manifesto no sintoma é derivado do desejo inconsciente
O pecado original é o conto do mito subjetivo
Promovendo uma organização
É relatado na enunciação
Denunciando a castração.
Um discurso tratado ao pé da letra
Pode impedir o sentido às avessas
Gerando uma impossibilidade de ouvir
Pois a ética nos diz:
É preciso escutar o sujeito onde ele deve advir
Eis o exemplo a seguir…
Não tenho medo.
Estarei mentindo dizendo que
À noite me assombra.
A certeza que tenho é que
Eu fui forte.
O meu corpo traduz que
Não adoeci sendo um fraco.
Os cortes na pele que exalam sangue enunciam que
Gozei plenamente fantasiando a cena que doeu.
Na noite em que meu pai fazia o jantar,
Ele apontou uma faca pra mim, perguntando o que queríamos,
Bem no momento em que
Beijaria minha mãe,
Olha o que eu fiz!
Hoje os pensamentos tomam conta…
Eu invento a cena que eu quero quando me relaciono com alguém,
Num riscar de lâmina sob a pele.
Lamento, mas tenho que dizer a verdade,
Me (a)risco demais…
O breve relato tem outro sentido
Ao ler de trás pra frente
Eis a escuta do inconsciente…
Me (a)risco demais…
Lamento, mas tenho que dizer a verdade.
Num riscar de lâmina sob a pele,
Eu invento a cena que eu quero quando me relaciono com alguém.
Hoje os pensamentos tomam conta…
Olha o que eu fiz!
Beijaria minha mãe,
Bem no momento em que
Ele apontou uma faca pra mim, perguntando o que queríamos.
Na noite em que meu pai fazia o jantar,
Gozei plenamente fantasiando a cena que doeu.
Os cortes na pele que exalam sangue enunciam que
Não adoeci sendo um fraco.
O meu corpo traduz que
Eu fui forte.
A certeza que tenho é que
À noite me assombra.
Estarei mentindo dizendo que
Não tenho medo.
Este trecho nos permite analisar o sintoma ligado a uma ficção…
A uma fixação à cena primária
Pois a narrativa se repete para organizar o caos
Da história originária
A montagem imaginária da cena reprimida
Se repete na via do gozo sintomático
A análise norteia a desmontagem da pulsão
Escoando essa energia à outra direção
O sujeito se utiliza do cultural para incluir em sua ficção
O “Pequeno Hans” por exemplo
Se utilizou de um elemento
Naquela cultura o cavalo foi o possível enredo
Pois ele precisava de algo que lhe pusesse medo
Em “O Homem dos Ratos”
A ideia de odiar o pai foi recalcada
Convertendo ao Eu o castigo
Envolvendo a fantasia do sadismo.
O rato mencionado em uma história de tortura
Desencadeou a neurose obsessiva
Esse personagem de ficção se deslizou
Na construção da fantasia subjetiva
No texto inicial é possível complementar
Que independente de um diagnóstico
É necessário escutar, analisar
Que o mito vai em direção a castração
E que a análise é uma porta de entrada
Para o sujeito da enunciação
O corte na pele nos revela uma culpa e uma atuação
Inicialmente desconhecida
O processo de investigação proporciona
Possíveis saídas…
Por um momento
Surgiu o desejo parricida e incestuoso
O recalque apareceu de um jeito misterioso
Dando o seu jeito de operar
Resultando a este sujeito o ato de se mutilar
Enunciar o desejo no sintoma é enigmático
A saída é pelo gozo sintomático
O sujeito goza velando o outro lado da moeda
O excesso é a forma de comunicar a sequela
Resultante do mito originário
Querendo provar o tempo todo o seu contrário.
Freud nos “Três Ensaios” discorre seu mérito e ele merece
Pois menciona o fato de que fomos um Édipo em série
O sujeito se utiliza do mito para se proteger
Tal como a lenda é relatada
Pois a dívida simbólica é paga
Pela via sintomática
Por Luana Branco
A transferência até pode ser vista como um fenômeno não exclusivo da clínica psicanalítica, mas para a psicanálise é um conceito fundamental. A transferência, apesar de não ser criada em uma análise, é revelada por ela. Esse conceito fundamental, que é a transferência, se apresenta como condição inerente ao tratamento psicanalítico, que, por sua vez, não obedece um tempo cronológico, pois se refere ao inconsciente, operando o tempo lógico. Na pressa por resultados, pela cura, pela adequação ao dito bem-estar, pela garantia de uma sociedade produtiva, a psicanálise vai na contra mão desse tempo? Se não fosse a condição de transferência, como se apresentaria a psicanálise hoje? Ainda seria psicanálise?
O que o sujeito leva para análise é o seu inconsciente, ou seja, a sua sexualidade, que é infantil, e para a psicanálise, o infantil não se refere à infância e sim a uma posição do sujeito frente ao Outro. Freud, a partir da clínica com as histéricas investigou os conteúdos da sexualidade, pensando na teoria do trauma, onde as pacientes traziam suas narrativas de sedução. Logo ele se deu conta que não se tratava da realidade factual e sim da realidade psíquica. A verdade tem estrutura de ficção, como bem disse Lacan1, no Seminário 4. Por isso, a sexualidade é infantil, é constitutiva.
No “Caso Dora”2, Freud fala dos “Estudos sobre a histeria” e da mudança radical que teve a técnica psicanalítica: da investigação metódica dos sintomas à associação livre, como sendo, incontestavelmente a única técnica possível. É justamente na associação livre que o sujeito do inconsciente pode emergir e cabe ao analista escutar em atenção flutuante, e ser paciente, até que se apresente um tropeço, algo que manque.
Freud3 também se depara, que em análise, o indivíduo traz toda uma série de vivências psíquicas, atualizadas em um vínculo com a pessoa do analista, o que diferencia do advir de uma lembrança do passado. É a tal da transferência que tanto assustou Breuer. Lacan4 aponta que foi através do caso Anna O., conduzido por Breuer, no qual a própria paciente chamava de cura pela fala (“talking-cure”), que veio à tona a transferência, se apresentando para Breuer de forma repelente, a qual Lacan nomeia de acidente inaugural, o afastando de uma primeira experiência.
Em “A dinâmica da transferência”, de 1912, Freud5 fala de um modo característico de cada um conduzir sua vida amorosa e que se repete ao longo da vida, que é da ordem do inconsciente. Esse modo característico pode ser direcionado pelo paciente para o analista, de forma positiva ou negativa. Também, observou que a transferência ocorria muito mais em indivíduos em análise. “Em primeiro lugar, deixemos claro que a transferência surge no paciente desde o início do tratamento e que, por algum tempo, representa a mola propulsora do trabalho. (...)”6
Em “O início do tratamento”, de 1913, a importância das entrevistas iniciais é posta por Freud7. E é sabido que a entrada em análise depende da transferência estabelecida, em que o analista pode pensar a estrutura clínica do paciente, ou seja, como este é atravessado pela castração, refletindo na condução da análise, e então realizar o manejo adequado da resistência. Freud8 esclareceu que a resistência encontrada no tratamento ainda fazia da transferência como condição de bom sucesso da análise: “(...) A resistência acompanha o tratamento passo a passo; cada pensamento, cada ato do analisando precisa levar em conta a resistência, representa um compromisso entre as forças que visam a cura e as aqui descritas, que a ela se opõem.”9
A resistência, em análise, pode se apresentar principalmente pela via do tempo e do dinheiro, que também é vista em suas diversas apresentações ao longo das épocas, com a emergente tecnologia. No final das contas, se percebe que o importante, de fato, é o manejo do tempo e do pagamento, e menos a sua versão apresentada. Assim, o não manejar pode custar ao analista a transferência e, consequentemente o tratamento analítico. Aqui fica demarcada a recomendação de Freud10 para o analista não ocupar a posição de filantropo, custando a ruína do tratamento, pois a análise se trata de trabalho e necessita desse efeito regulador do pagamento para operar seus efeitos.
Para o manejo da resistência, Freud11, em “Recomendações aos médicos”, de 1912, alerta o próprio psicanalista sobre seus pontos cegos, lembrando então, o tripé da formação do analista. É na transferência que o analista percebe até onde consegue sustentar a análise e, também até onde o sujeito consegue suportá-la. O analisando não é o único que paga, abdicando do gozo absoluto ou mortífero, mas também o analista, que para Lacan12, paga com o seu corpo, com o seu ser, em uma transferência instituída.
Partindo de que o paciente não poderá lembrar de tudo que fora reprimido, Freud13 pontua, em “Além do princípio do prazer”, de 1920, que o reprimido aparece como repetição, de forma atualizada, no estabelecimento da transferência com o analista, remetendo à sexualidade infantil, ao complexo de Édipo e seus desdobramentos,instituindo assim, uma neurose artificial, a “neurose de transferência”. Assim, Freud avança no conceito de transferência, trazendo o amor transferencial.14
Harari15 relaciona a “lua-de mel” de início de análise como efeito que acontece em todo início de namoro, mas pontua a importância do amor e ódio para se saber o que acontece no percurso de uma análise:
(...) Aquele a quem se atribui o saber, o amo, ou seja, a atribuição de um saber gera amor. Aquele de quem vou retirar essa atribuição de saber, aquele que então destituo desse lugar de saber, o odeio. O amor e o ódio, então, tem a ver com atribuições e des-atribuições de saber. (...). (HARARI, 2008, p. 164).
Harari15 também traz o sintoma para falar do amor em análise, onde o amor é dirigido ao analista, como o analisando ama o seu sintoma, como ama a si mesmo. E mesmo sem saber o porquê, ainda avança, até que o analista enquanto sintoma é descartado, vira resto.
O amor é insistência, e em transferência o paciente insiste, tem paciência com o analista que, por sua vez, continua apostando no paciente e na possibilidade de emergir o sujeito do inconsciente. Pensando na clínica, entra em cena o sujeito em constituição. Como o adulto fala dos sonhos, as crianças falam dos desenhos. O analista escuta e, através do que se estabelece nesse encontro entre analista e analisando, ou seja, na associação livre do paciente e na escuta do analista, que o sujeito do inconsciente pode emergir, através do brincar. Esse brincar que traz a verdade do sujeito, sendo esta com estrutura de ficção, onde o sujeito faz criação, invenção que dá corpo para a sua realidade psíquica, que é de uma ordem fantasmática, em que os pais entram em cena por várias roupagens. Assim, a transferência na psicanálise com crianças, se desdobra em um campo transferencial com os pais para que a criança possa sair da posição de objeto, pela via da intervenção do analista.
Molina16 traz que as crianças produzem algo através de recursos imaginários e que essas produções emergem pelo e no laço transferencial, este sustentado pelo analista, para que se instale a função simbólico-representativa. Em análise, a criança também se dirige ao Outro, supondo nele um saber. No seminário 8, o Outro, grande A trazido por Lacan17 como lugar da fala, dos tesouros do significantes, ocupa um lugar na transferência e avança na medida em que o sujeito questiona sobre o desejo.
Lacan18, no seminário 11, traz o sujeito do suposto saber como condição para que ocorra a transferência, o suposto saber do analista que faz emergir um desejo do
analisando por esse saber. Lacan, então, relaciona o sujeito do suposto saber ao desejo, relação do desejo ao desejo: “É nesse ponto de encontro que o analista é esperado. Enquanto o analista é suposto saber, ele é suposto saber também partir ao encontro do desejo inconsciente. (...)”19 Harari20 traz o sujeito suposto ao saber, trazendo como ponto fundamental o saber, que esse “ao saber” é um sujeito que é suposto: “sei que sabe que sei que sabe”.
Para Lacan21, o analista precisa saber ocupar o lugar vazio, de sujeito barrado, para que o sujeito possa localizar o significante faltoso. “(...) que sejamos, no último termo, aquele que vê a, o objeto da fantasia, que sejamos capazes, em qualquer experiência que seja (...), de ser, afinal, aquele vidente, aquele que pode ver o objeto do desejo do Outro (...).”21 O analista empresta o seu corpo, sua escuta, faz semblante. Analista faz semblante do objeto a21, mas não é o objeto a, esse algama22 fundamental, objeto que inaugura o lugar onde o sujeito pode se fixar enquanto desejo, que para Lacan23 é aquilo: “(...) que se manifesta no intervalo cavado pela demanda aquém dela mesma, na medida em que o sujeito, articulando a cadeia significante, traz à luz a falta-a-ser com o apelo de receber seu complemento do Outro, se o Outro, lugar da fala, é também o lugar dessa falta.”
Lacan24 recorre à Freud, para falar de amor, marcando que amar, é essencialmente, querer ser amado, remetendo ao narcisismo, para falar de um assujeitamento do sujeito ao desejo do analista, pontuando que este: “(...) deseja enganá- lo dessa sujeição, fazendo-se amar por ele, propondo por si mesmo essa falsidade essencial que é o amor. O efeito de transferência é esse efeito de tapeação no que ele se repete presentemente aqui e agora.”25 Em “A direção do tratamento”, Lacan26 pontua que o amor é dar o que não se tem, mas alerta que nem mesmo esse nada é dado pelo analista, que se faz presente em sua escuta:
É mais tarde que sua presença se faz notar. Além do mais, o sentimento mais agudo de sua presença está ligado a um momento em que o sujeito só pode se calar, isto é, em que recua até mesmo ante a sombra da demanda. Assim, o analista é aquele que sustenta a demanda, não, como se costuma dizer, para frustrar o sujeito, mas para que reapareçam os significantes em que sua frustração está retida. (LACAN, 1998, p. 624.).
E sobre que sujeito se escuta, pensando na contemporaneidade? Escutar o sujeito em sua singularidade nunca estará ultrapassado, até porque em psicanálise, o sujeito nunca será, em sua pureza do termo, contemporâneo, se levarmos em conta o sujeito inconsciente, ou seja, a sexualidade infantil constituinte de cada um. Segue-se insistindo na clínica psicanalítica, esse tratamento do real pelo simbólico, sustentando a ética da psicanálise, que norteia a sua práxis, marcando a clínica como soberana: a pergunta pelo desejo. A transferência é condição para análise, é motor. A transferência não é, portanto, uma função do analista, mas do analisante. A função do analista é saber utilizá-la, como alertou Freud27: “(...) O psicanalista sabe que trabalha com as energias mais explosivas e que necessita da cautela e escrupulosidade de um químico. (...).”
Portanto, muitas questões ainda permeiam a prática da psicanálise na contemporaneidade. É possível realizar psicanálise propriamente dita fora do contexto clínico do consultório, por conta da transferência e suas implicações de manejo? Como demarcar o lugar da psicanálise, sem que ocorra a foraclusão de sua participação, nos diálogos com outros saberes? Contudo, talvez a grande questão seja: como os praticantes da psicanálise podem não ceder às tantas demandas de sua época vigente? E a partir da pergunta que engendra esta jornada de trabalhos: “Que sujeito se escuta?”, lanço uma outra, diante de tantas inquietações: o sujeito está sendo escutado? Ou são as demandas que estão sendo atendidas?
*Texto produzido para a VIII Jornada Tubaronense de Psicanálise, 2023.
**Psicanalista, membro da Associação Movimento Psicanalítico Sul Catarinense e
participante da Maiêutica Florianópolis Instituição Psicanalítica. Psicóloga atuante na saúde pública. Email: luanabranco.psi@gmail.com
REFERÊNCIAS
1LACAN, J. Para que serve o mito. In: O seminário, livro 4: A relação de objeto (1956-57). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 259.
2FREUD, S. Fragmento de uma análise de um caso de histeria (caso Dora) (1905). In: Histórias clínicas:
cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. p. 35-36.
3FREUD, S. Fragmento de uma análise de um caso de histeria (caso Dora) (1905). In: Histórias clínicas:
cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. p. 157.
4LACAN, J. No começo era amor. In: O seminário, livro 8: A transferência (1960-61). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. p.16.
5FREUD, S. A dinâmica da transferência (1912). In: Obras completas volume 10: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schereber”), artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913). São Paulo: Companhia das letras), 2010. p. 101-102.
6FREUD, S. Conferência 27 (1917). In: Obras completas volume 13: Conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917). São Paulo: Companhia das letras), 2014. p. 476.
7FREUD, S. O início do tratamento (1913). In: Obras completas volume 10: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schereber”), artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913). São Paulo: Companhia das letras), 2010. p. 125.
8FREUD, S. A dinâmica da transferência (1912). In: Obras completas volume 10: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schereber”), artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913). São Paulo: Companhia das letras), 2010. p. 102.
9FREUD, S. A dinâmica da transferência (1912). In: Obras completas volume 10: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schereber”), artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913). São Paulo: Companhia das letras), 2010. p. 104.
10FREUD, S. O início do tratamento (1913). In: Obras completas volume 10: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schereber”), artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913). São Paulo: Companhia das letras), 2010. p. 132.
11FREUD, S. Recomendações ao médico que pratica a psicanálise (1912). In: Obras completas volume 10: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schereber”), artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913). São Paulo: Companhia das letras), 2010. p. 117.
12LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 593.
13FREUD, S. Além do princípio do prazer (1920). In: Obras completas volume 14: História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo: Companhia das letras), 2010. p. 131.
14FREUD, S. Observações sobre o amor de transferência (1915). In: Obras completas volume 10: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schereber”), artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913). São Paulo: Companhia das letras), 2010. p. 166.
15 HARARI, R. O que se espera de uma análise? In: REMOR, Carlos Augusto; LIED, Inezinha Brandão; MACARELLO, Tânia Vanessa Nothen (orgs.). O psicanalista, o que é isso? Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2008. p.164.
16MOLINA, S. E. De onde surge o brincar e o desenhar? Revista Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p.43-53, jan./jun. 2011. Nota de rodapé, p. 44.
17LACAN, J. A transferência no presente. In: O seminário, livro 8: A transferência (1960-61). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. p.172.
18LACAN, J. Do sujeito suposto saber, da díade primeira e do bem. In: O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. p. 220.
19LACAN, J. Do sujeito suposto saber, da díade primeira e do bem. In: O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. p. 222.
20 HARARI, R. O que se espera de uma análise? In: REMOR, Carlos Augusto; LIED, Inezinha Brandão; MACARELLO, Tânia Vanessa Nothen (orgs.). O psicanalista, o que é isso? Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2008. p.166-167.
21LACAN, J. O não de sygne. In: O seminário, livro 8: A transferência (1960-61). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. p.164-165.
22LACAN, J. A crítica da contra-transferência. In: O seminário, livro 8: A transferência (1960-61). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. p.194.
23LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 633.
24LACAN, J. Do sujeito suposto saber, da díade primeira e do bem. In: O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. p. 239.
25LACAN, J. Do sujeito suposto saber, da díade primeira e do bem. In: O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. p. 240.
26LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 624.
27FREUD, S. Observações sobre o amor de transferência (1915). In: Obras completas volume 10: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schereber”), artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913). São Paulo: Companhia das letras), 2010. p. 170.
Quando comecei a produzir minha escrita, tinha intenção de escrever sobre os pacientes que nos chegam e sobre seus pedidos que, de um modo ou de outro, nos chegam vestidos de apelos sustentados pela lógica capitalista de consumir desenfreadamente TUDO, tendo em vista que, quem paga, leva. Até aí, entendia que se tratava de escrever sobre como psicanalisar hoje, diante destas apresentações sintomáticas e de tanto apelo.
Seguia escrevendo sobre isso até ser comunicada pela colega de associação acerca da mesa que faria parte aqui no Enlace e, ouvi-la dizer: “Estais na segunda mesa, junto comigo, porque meu texto é sobre o tempo e o teu sobre dinheiro”. Naquele momento recebi a comunicação e depois, um tempo depois, percebi que fui furada, a velha angustia de castração causando uma questão. Eu já não tinha mais tanta certeza sobre o que estava escrevendo exatamente. E a dúvida diante da certeza é sempre um dilema neurótico.
De todo modo, apostei na livre associação e me entreguei a cadeia de meus pensamentos, afinal, desde o princípio, essa é a regra fundamental da Psicanálise. E é claro, a resistência apareceu e o texto parou de ser escrito.
Voltei ao texto três dias depois, foi aí que entendi que meu texto poderia ser sobre dinheiro e outras coisas da clínica psicanalítica, sobre um retorno a Freud e às suas recomendações sobre o psicanalisar. Afinal de contas, parece que muitos analistas tem esquecido destas recomendações ou insistem em ignora-las sob o custo de uma psicanálise empacotada, do baralho das emoções ao solilóquio, o que vale é corresponder ao que se pede, render-se aos apelos do capital e do próprio narcisismo: ter a agenda lotada, a qualquer preço, a qualquer custo, mesmo que isso custe a Psicanálise.
Porém, Freud (1912), de algum modo nos adverte:
[...] nada se pode dizer contra um psicoterapeuta que combine uma certa quantidade de análise com alguma influência sugestiva, a fim de chegar a um resultado perceptível em tempo mais. [...] Mas é lícito insistir em que ele próprio não se ache em dúvida quanto ao que está fazendo e saiba que o seu método não é o da verdadeira psicanálise”. (FREUD, 1912, p.72)
O que cabe ao analista e o que não cabe? Não nos cabe a pretensão de dar ao analisante o que nos pede em meio a sua metáfora neurótica: Me cure, me ame. Se cedermos a esse pedido, com técnicas empáticas, autorrevelação e quem sabe, apostar na ambição terapêutica da cura, já não se trata mais de uma Psicanalise, pois “O médico deve ser opaco aos seus pacientes e, como um espelho, não mostrar-lhes nada, exceto o que lhe é mostrado”. (FREUD, 1912, p. 72). Quero marcar algo aqui: e, como controlar o que é mostrado fora? Afinal de contas, quem escapa do Instagram?
Em tempos de verborragia crônica, em que quase tudo é compartilhado, curtido e exposto alucinadamente pela pulsão “instagramica”, digo, escópica, psicanalisar hoje, é escutar dentre tantos mal estares, uma busca capitalizada pela felicidade. Que se compre um saber do analista e uma receita certeira de felicidade. Porém, há de se advertir que o sujeito é quem tem de pagar, pagar com o corpo, com as palavras que escapam e com seu sintoma. Numa análise, quem paga, não leva…deixa.
A enxurrada de psicoterapias, coachterapias e as charlatanias abrem espaço para uma entrega rápida ao pedido do cliente. A era do “todo mundo cabe no manual diagnóstico” produziu também a era das saídas gratiluz como um fenômeno pandêmico.
O filósofo coreano Byung-Chul Han, escreveu em 2015 que padecemos de patologias não virais, mas sim, neuronais. “[...] depressão, transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (TDAH), transtorno de personalidade limítrofe (TPL), Síndrome de Burnout (SB), entres outros transtornos, os quais determinam a paisagem patológica do começo do século XXI”. Complementa, “[...] não são infecções, mas enfartos, provocados não pela negatividade de algo imunologicamente diverso, mas pelo excesso de positividade” (tóxica, inclusão minha). (HAN, pg.7, [2015] 2021), ou ainda, de diagnósticos, prescrições e consumo.
Muitos dos que nos chegam, trazem consigo o excesso que os mantém no vazio, mergulhados em suas pulsões especulares deslizam/desfilam seu narcisismo em meio a mls de Botox, horas infinitas de academia, cílios, caras e bocas. Sujeitos castrados que perambulam pela terra como se não o fossem, na certeza de que tudo pode ser tamponado pelo poder de compra.
Eis a cereja do bolo, uma análise não é uma psicoterapia, nem tampouco se relaciona ao comércio das terapias, do “você faz pacote?”, “consigo um descontinho”? Até entendo que o descontinho diz mais do candidato a análise, do que ele mesmo possa supor, inclusive nos serve de material, porém, muitas vezes, isso nos chega como efeito da trivialidade cotidiana que é carregada de objetos desejosos, cupons de descontos e exigências advindas do “você fala tão pouco, me faça perguntas, me ajude”. Porém, em uma análise, as exigências são do analista. Trata-se de um trabalho tomado por uma lógica em que o analisando precisa falar e o analista escutar, conforme nos recomendou Freud (1912) “[...] Se o médico se comportar de outro modo, estará jogando fora a maior parte da vantagem que resulta de o paciente obedecer à ‘regra fundamental da psicanálise’. (FREUD, 1912, p.68). Logo, o método psicanalítico não inclui orientação para que se realize exercícios e respire, aqui o que se pede é: fale.
Se pôr a escutar, manter o silencio, o corte, a construção. Esburacar para que pela fenda, vaze a verdade do sujeito do inconsciente. É com a falta, na emergência do desejo, que o sujeito tem de se haver. Diante dessa articulação aparece a questão com o dinheiro. A forma como cada um se relaciona com ele, deixa explicito seus efeitos e sintoma. Se se trata de capital, é de investimento libidinal que estamos falando, e diante disso, cabe ao analista operar, intervir. E esta operação, só pode se dar na singularidade de cada discurso. “[...] as questões de dinheiro são tratadas pelas pessoas civilizadas da mesma maneira que as questões sexuais - com a mesma incoerência, pudor de hipocrisia”. (FREUD, 1912, p.81).
Lacan (1998) nos diz que o analista também paga. Paga com sua pessoa ocupando certo lugar denunciado pela transferência e com aquilo que fala em ato e com o silencio que sustenta. O analisante paga pelo que fala e outrora cala, o analista paga com sua presença.
Responsabilizar-se é o convite feito pela Psicanálise. Subverter a lógica cartesiana, deixar de ser o centro do próprio umbigo, duvidar do Eu. Pois foi a partir da fundação deste, articulado a outras instâncias que organizadas de forma sistemática, atemporal e dinâmica produziram no sujeito representações psíquicas das mais diversas, associadas umas às outras em um ir e vir de pulsões que circundam objetos e que perfazem um circuito na direção da satisfação. Entre o imperativo do gozo do Supereu e as exigências do Isso, o Eu se articula com a realidade. De fantasia em fantasia, sustenta uma narrativa sobre si mesmo sob o legado do princípio da realidade, em que do desejo, nada se quer saber que não se sabe.
Psicanalisar hoje, assim como ontem, requer maestria. Requer manejar a transferência na direção daquilo que trilha a emergência do Isso, pois onde o Eu padece, o Isso há de vir.
Psicanalisar hoje é retornar a Freud, é recordar, repetir e elaborar seu legado, na contramão de tudo aquilo que insiste em se repetir como sintoma do tempo é dinheiro, da técnica pronta, da correspondência as demandas.
E no final das contas, já dizia um sábio analista: “Quem fala mais, paga a sessão!”
1Thais Wachholz. Mestre em Educação pela Universidade do Extremo Sul Catarinense - UNESC (2016). Especialista em Gestão Social de Políticas Públicas (2011), Psicóloga pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2003). Professora e Supervisora de estágio clinico em Teoria Psicanalítica das Faculdades ESUCRI. Psicanalista, supervisora clínica, membro da Associação Movimento Psicanalítico Sul Catarinense (Tubarão/SC). Participa do Grupo de Estudos em Psicanalise A trilha Freudiana (Criciúma/SC). Temas de interesse: Clínica psicanalítica, e temas do contemporâneo: racismo, gênero e sexualidades
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, S. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 12. Rio de Janeiro: Imago. [1912] 1996.
FREUD, S. Sobre o início do tratamento (novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise I). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 12. Rio de Janeiro: Imago. [1913] 1996.
HAN, B.C. Sociedade do Cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2021.
LACAN, J. Escritos A direção da cura e os princípios do seu poder. Zahar editora. Rio de Janeiro, 1998
Por Ana Paula Mazzuco
Quando Freud menciona que é pela experiência que se aprende a escuta do inconsciente, trata-se do próprio analista experimentar seus afetos em sua análise.
Não há escola que ensine a escuta. A formação do inconsciente é subjetiva. Sustenta-se no ofício de escutar o sujeito do inconsciente que o interpela pela via sintomática. Com a causa que o causa.
No início de seu trabalho, Freud interessou-se em investigar o afeto que afetava a histérica. Esta pediu para que ele se calasse, pois precisava falar. A afetação era o aparente no corpo, o afeto era o que necessitava de uma escuta. Em algum momento a interpretação surgia para uma elaboração. Freud (1926) destaca que: “O analista tem que esperar o momento certo para informar ao paciente sua interpretação. Para saber o momento certo, é uma questão de tato, e isso se adquire através da experiência”.
A manifestação do sintoma convoca o analista e o analisando a trabalharem juntos como em um sítio arqueológico. Freud menciona que “o trabalho do analista se assemelha ao do arqueólogo quando reconstrói a história do paciente com base em fragmentos de memória”.
O sítio arqueológico pode ser descoberto por acaso, durante uma obra pública, por análises topográficas e cartográficas ou fotografias aéreas. O mesmo acontece na análise. O neurótico vai ao encontro do analista por acaso. O “por acaso”, que é o sintoma, pode aparecer desde uma enxaqueca em que os tratamentos medicinais não deram conta, até as paralisias sem explicação.
O por acaso, vira causa. O sujeito é convidado a ir ao reencontro da causa. É um reencontro, porque acessa o material recalcado de um desejo reprimido. A censura ou recalque é o elemento operatório desse apagamento. O processo de escavação liga-se ao afeto primordial que afetou o sujeito.
O trabalho não tem duração definida. Alguns sítios são analisados por meses ou anos, pois o sol forte e a chuva impedem o trabalho.
Na análise, o processo depende tanto do trabalho psíquico que o sujeito se propõe, quanto do manejo das resistências movido pelo analista. Freud (1926) discorre: “Na medida em que encorajamos o paciente a superar as suas resistências quanto à comunicação, educamos o seu Eu a superar a sua tendência a tentativas de fuga e a suportar a aproximação do recalcado”. A resistência faz parte do processo na via transferencial.
O sol e a chuva representam as saídas inconscientes que o sujeito se baliza para suportar o trabalho analítico. Ele pode parar o processo por ter ficado exposto demais às interpretações do analista, lhe causando queimaduras. Ou precisa de um tempo para elaborar uma sessão que gerou-lhe uma chuva de lágrimas.
A sondagem é outra característica. Os arqueólogos procuram na superfície alguma evidência de ocupação humana.
Na análise a investigação superficial é a partir da queixa, do sintoma. É preciso ir além do sintoma, pois ele é um substituto de uma satisfação pulsional. As entrevistas preliminares são uma sondagem. É preciso sondar se o sujeito é passível de uma análise. Estes são os neuróticos, pois sofrem por ter um mal estar. São capazes de direcionar sua libido aos objetos e também ao psicanalista. Se o sintoma que ele trás, a medicina descartou qualquer possibilidade de tratamento, em análise, o sintoma será escutado, analisado, investigado e reconstruído.
As evidências aparecem na fala, no sujeito da enunciação, do não dito, pois o inconsciente se manifesta no vacilo, nos tropeços. Esses achados são os desejos. O sonho, ato falho, chiste e o sintoma, são armadilhas de apanhar desejos. É neles que Freud foi procurar o inconsciente.
A organização do terreno é outra semelhança. Este é dividido para facilitar o lugar das peças encontradas.
É necessário demarcar o lugar do analista e do analisando sem que haja o equívoco do analista. Este assume sua função de acolher a demanda ao invés de atendê-la. Assim, não há equívoco quando se sabe o que é certo fazer.
O analista ajuda na organização do terreno psíquico. O sentido do analista pode gerar efeitos que será organizado a posteriori pelo sujeito. Ou as metonímias geram metáforas, ou as metáforas sofrem metonímias através dos sentidos que o sujeito constrói. Este busca se organizar. Muitas vezes ele sai bagunçado da análise para chegar à organização. E o analista? pode sair bagunçado e afetado? Se isso ocorrer, ele precisa ser supervisionado e analisado.
A última comparação entre os trabalhos é que na arqueologia o solo é cortado em camadas finas para que nenhum material seja destruído. A terra retirada é peneirada e reservada.
Não é diferente no trabalho analítico, pois Freud (1926), demarca: “Não desprezamos a palavra, ela é um instrumento poderoso. Ela é o recurso pelo qual comunicamos os sentimentos”. Essa menção demarca o processo civilizatório, pois a tendência agressiva humana, passa pela peneira, reduzindo-se à palavra. O ser humano formou camadas defensivas para sobreviver. A palavra é um ato de efeito. O Nome do Pai endereçado ao sujeito e inscrito neste, organiza o psiquismo.
O analista em seu manejo clínico, peneira os significantes que o analisando apresenta, reserva e o devolve. O sujeito formulará uma significação. Quanto maior a implicação do sujeito, mais exposto ele fica às camadas frágeis de seu psiquismo. No campo da escavação da análise há o cuidado para que o material frágil do sujeito não seja destruído. O nome disso é o manejo da transferência.
A petição do afetado envolve uma repetição, um re-pedido. O sujeito interpela ao analista uma demanda de amor primordial. A figura do analista sofre modificações, porque segundo Lacan (1964), “a presença do analista é ela própria uma manifestação inconsciente”. O analisando perceberá que o analista é faltante, não lhe dará respostas. Fortalecer o Eu para suportar a dor de existir dito por Lacan e tornar possível viver em uma miséria comum, mencionado por Freud, é o que rege a análise. Quando Freud se posicionou em o “Mal estar na Civilização” sobre o sentimento oceânico, deixa claro que a felicidade comum é impossível porque o desejo é subjetivo. Viver em sociedade é abrir mão de um gozo. Ao invés de cada sujeito fazer o que quer, pois o caos se instalaria, aplica-se a lei para a infelicidade comum.
Conclui-se que o sujeito se organiza no sintoma, como uma espécie de renovação dos momentos que vão do crime à restauração da ordem. A punição/sintoma é administrada a ele mesmo, denunciando-se castrado. O crime é o desejo, e a restauração da ordem é a castração. Essa menção, traduz que todos nós fomos um Édipo. Freud (1916), reforça que a análise confirma isso tal como a lenda o relata.
É da afetação que diz respeito ao desejo que o sujeito não experienciou que se trata a escuta analítica. As roupagens da cultura passam pela peneira da escavação. O que sobra no processo é a castração do analisando e do analista. Este assume o lugar de resto e aquele o lugar de saber fazer com seu sintoma.
Como lidar com os excessos e a instantaneidade de significantes que a cultura oferece? A psicanálise não responde, mas escuta como o sujeito é afetado pelos imperativos de gozo da cultura. O “não faça” nos tempos de Freud e o “faça” nos dias atuais geram efeitos.
A escuta psicanalítica vai em desencontro às demandas culturais. Ela escuta o sujeito impotente diante dela. Escuta a busca do sujeito em seu dilema conflitante de onde estará o falo. A busca do sujeito em retornar ao Eu Ideal é comparada a uma luz no fim do túnel. Ele não chega até ela, mas move-se na busca de se aproximar através dos ideais do Eu, das identificações. Isso acontece porque o sujeito foi um efeito de separação.
A cultura que não permite um lugar para a falta, que tudo pode, haverá um espaço para a psicanálise, uma teoria que não se trata de atender demandas? Por outro lado, ela acolhe o sujeito que se propõe a se implicar. A psicanálise proposta inicialmente por Freud e continuada por Lacan não deveria atuar na cultura para tornar os sujeitos desejantes ao invés de psicotizantes?
Referências
FREUD, S. (1901-1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Obras Psicológicas Completas - Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago,2006.
________. (1926) A questão da análise leiga, ESB. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
________. (1930). O Mal estar na Civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
________. (1937). Construções em análise. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
Lacan, J. (1964). O seminário, livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar editora,1979.
Queria iniciar minha fala com uma curiosidade, a explicação histórica da seguinte expressão: “discussão bizantina”. O que significa? Uma discussão que não cabe no seu contexto, uma discussão indiferente, uma masturbação intelectual. Esta, se origina do cerco de Constantinopla, em 1456, quando com os turcos nos seus portões, esses romanos helenizados, preferiam discutir o sexo dos anjos, do que, precisamente, algo que os pudesse retirar daquela situação, que, como podem imaginar, não era das mais agradáveis. Claro que isso é mais um fato contado para respaldar a negligência do Ocidente do que a realidade, ou talvez esse desprezo pragmático típico da época e que nos acompanha até hoje.
O ponto que quero chegar com isso é apenas minha opinião acerca de muitas discussões, que no decorrer dos meus parcos anos como acadêmico desta bela área do saber chamado psicanálise, sempre estou a me deparar. Não estou desmerecendo a pauta, ou seja, “a psicanálise antecede a clínica ou a clínica antecede a psicanálise?”, tanto é assim, que a presente roda de conversa é um alegato a questão, mas, retomando, sim, como é conduzida, onde o duelo de egos e de religiões ocupa o espaço da razão, onde a emoção impera e a inteligência cala. Onde o ato de ‘sem-surra’ (censura), esconde, pelo contrário, muita, ‘com-surra’.
Dito isso, pelo qual ficara óbvia minha posição a questão anterior, como creio que meu colega, no seu texto também se posiciona, conta nossa querida Roudinesco, na sua magna biografia de Freud, que este se jactava de seus conhecimentos humanísticos, no sentido, do homem renascentista, do homem vitruviano de da Vinci. Típico da época, a palavra ‘especialista’, como conhecemos hoje, ainda estava em processo de evolução, ou, como considero, de ‘involução’, pois, junto ao austríaco, ainda sou um romântico do homo universalis.
Na sua Autobiografia, Freud escrevia, ‘possuo mais livros de antropologia do que de psicologia’, mas, o que ele queria dizer com isso? Quais eram os livros
de psicologia que ele fazia referência e quais eram, por consequência, os de antropologia? Se tomarmos, dois como base, clássicos atemporais, teremos a Psycopathia Sexualis de Kraft-Ebing e a Rama dourada de Frazer. Duas obras muito citadas no decurso do corpus freudiano, principalmente no seu período que podemos chamar de mais teórico-prático, e, para alguns, mais criativo, a grande diferença, está na postura como são tratadas, na primeira, o homem é uma espécie de animal pervertido em um zoológico para depravados, na segunda, o homem é um sujeito pertencente ao inconsciente, desenvolvido por este e ‘poetizado’ por este.
Quando uso a palavra ‘poetizado’, faço referência a sua raiz grega, aquela que encontramos por exemplo em Aristóteles, na poiética, ou seja, ato de criar, de fazer, de produzir. Assim, a interpretação que uso fica evidente, ‘ação’, não se tratando de algo moral, meramente institual e sem qualquer fim, pois mesmo não possuir um fim é falar em um fim, como alguns querem interpretar o inconsciente.
Sinceramente, sempre me surpreenderá como ninguém consegue compreender que no Caos está a maior das Ordens, certo estava desde já Hesíodo que iniciava seu grande poema com “no início, era o Caos”. Por acaso, e já que citamos acima Aristóteles, é tão complicado entender a diferença e o complemento entre a potência e o ato? O positivismo teve um impacto real em nossas vidas, no dito progresso, mas que assassinato à alma, e alguns, não duvido que um que outro religioso aqui presente, as vezes deixa passar tal fato, o que me preocupa, e nisso quero pensar que ninguém sofra, pois, do contrário, estaria na associação errada, uma dúvida, alguém conhece uma de TCC? Enfim, não quero duvidar, que dentre os presentes, tenha alguém que negue sua existência. Um psicanalista sem inconsciente! Ou seja, uma Civilização sem Cultura... é possível?
Assim, essa ‘ação’ é provida do uso do símbolo, que trato como a principal ferramenta de atividade do inconsciente, ou seja, um meio termo que se encaminha para a razão, o cinzel , o pincel, o martelo.
Estágio primitivo do Supereu, pois este, é consequência da Civilização, da violência reprimida, da liberdade cedida (expressão certeira dos
contratualistas), o que mais facilitaria, para os ouvintes compreender minhas palavras, é o mito, a caixa de ferramentas dos nossos queridos símbolos, o mármore, o quadro.
Gosto muito de dois autores, que não sendo em si psicanalistas, levantam e fundamentam as pautas que passaremos a debater, então, se não os ficar citando, pois o intuito de hoje é acadêmico, mas não academicista, sintam-os como que por detrás dos panos das minhas palavras. Um deles é Mircea Eliade e o outro é Norbert Elias.
O primeiro define o mito como algo vivo e interno a todo produto do produzido ‘homem’, o segundo, diferencia Kultur e Civilisation, ou seja, a produção eidética da produzida práxis. Com ironia, e olhando para cada um de vocês, quantos já não estão pressentindo um Totem e um Tabu, e um certo, Mal- estar?
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Tendo lido a introdução, referenciando e secundando nosso trabalho, passemos abordar dois mitos, e coloquemos em prática um pouco do que viemos insinuando. Um deles, retirado de Sebastián Colón, o filho do ‘descobridor’ da América, em relação aos povos taínos e o outro, retirado de Davi Kopenawa, líder indígena do povo yanomami. Percebam a dialética, de um lado, o branco europeu, e de outro, o filho da floresta. Claro que não é nosso intuito lê-los na integra e com suas palavras, a escolha, consciente (ou será, com ironia, que inconsciente), recaiu na temática que ambos abordam, nesse eterno, e tão humano, o tabu chamado mulher.
Sendo assim, para começar, vejamos como os taínos, que quer dizer os bons, em dicotomia com os caraibas, os maus (destes últimos sairá a expressão ‘canibal’), retratavam as origens da mulher.
Naqueles dias do passado mítico, logo após, saírem da caverna que fazia de Mundus para um povo que até então fora unido, os taínos, agora com a Terra toda para povoar, perceberam, que pela primeira vez, envelheciam e além de
tudo, conheciam a morte, também que, fato talvez o mais importante, todos eram, homens, biologicamente homens. Desesperados, perceberam seu erro, sua curiosidade, de como aquela caverna-útero era confortável, segura, no entanto, agora, o trabalho, as doenças, a senhora Necessidade os atormentava.
Sem mais esperanças, deitavam e se deixavam morrer, os que foram tantos, agora começavam a ser poucos. Como o suspiro do moribundo, de última esperança, alçaram suas mãos aos céus e pediram perdão, não foram ouvidos na primeira, segunda, mas na terceira, um guia, um anjo como diriam os judaico- cristãos, desceu até eles, arauto de um comovido deus.
Disse que procurassem determinada árvore, perto de determinada lagoa (percebam, o simbolismo evidente e universal), e nela amarrassem um homem, quem dentre eles fosse o mais belo, atraente. Pensando se tratar de uma espécie de sacrifício (lembrem-se de tantos outros na mitologia mundial), é de se pensar que não houvera muitos candidatos, mas, violentamente, pois, como diria Eliade e Frazer, a violência na mitologia representa um valor de transformação, ação, lembrem-se que estamos em um estágio amoral, não civilizatório, e sim, instintivo para um fim ‘não burguês’, enfim, retomando, amarrando o infeliz aquela árvore, de seus galhos desceu um... pica-pau, ou pájaro carpintero, mas, pela feliz coincidência, vamos preferir a versão em português. Como podem imaginar, nunca um nome caiu tão bem.
Claro que a continuação do conto deixamos na imaginação de vocês, caros colegas, mas, da mesma forma que não perguntamos o que houve depois de Adão e Eva, e como povoaram o mundo... deixemos no subentendimento o fim.
O outro mito que gostaria de abordar é sobre como surge o que nós, acadêmicos ocidentais, entendemos como xamã, pelo menos uma de suas formas na cultura yanomami. Escreve Kopenawa, que os filhos daqueles que já o são, quando em caça, pode ocorrer de encontrarem nas matas, por exemplo, uma espécie de ondina, ninfa dos rios, que, para o caçador, aparenta ser, uma mulher de beleza deslumbrante, ênfase na palavra ‘deslumbrante’. Percebendo que ela está a apontar para certas araras de azul incomparável, o moço, trovadoresco, decide por se provar, e alvejar as mesmas com sua poderosa
flecha, a partir do ato, e com os cadáveres das pobres coitadas aves, o mesmo faz uma indumentária que regala a amada. Se, tudo correr bem, correr também, o don Juan vai, atrás da ondina que em direção ao rio se apresenta. Mergulha, e o outro, também, ao ponto de quase se afogar em uma profundidade não esperada.
Quando percebe, está em uma espécie de outro mundo, a terra retorna aos seus pés, com a diferença de que, o ar, se transformou em água. Em uma simples casa, a ondina o espera com sua irmã, mãe e... pai. Logo no primeiro contato, na verdade, com apenas os desejos desse primeiro contato, nos seus ‘quases’, a moça já quer apresentar os futuros sogros! Infelizmente, para o caçador, o sogrão é uma sucuri. Dorminhoca, mas, quando acordar, com uma fome nórdica.
A questão é que, tanto a ondina como as irmãs e mãe, o tratavam da melhor forma possível, ao ponto de deitarem-no numa rede e alimentá-lo não somente com os frutos da terra, ao menos, é o que as ‘caricias’ descritas por Kopenawa deixam a atender. Ou seja, como muitos, que na fila do sacrifício se encontram, vive um último momento de prazer.
Vejam, uma hora ou outra o pai-sucuri irá acordar, e quando acordar, solicitará o hospede como manjar. No entanto, para não parecer que desrespeita o princípio básico do ‘sal e fogo’, oferece, antes, ensinar todo o conhecimento necessário para a prática xamânica. De novo, é necessário apontar todo o simbolismo óbvio? E ainda mais para nós, psicanalistas!
No final, o nosso herói romântico consegue fugir com auxilio das amadas, então não se preocupem.
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Enfim, com estes dois breves relatos, podemos levantar várias questões pertinentes, retomar o dito pelo meu colega, e discutir sobre o que diferencia um psicanalista de um psicólogo qualquer. E isso, não querendo desmerecer meus colegas de profissão, com prepotência, talvez, assumo, mas o ponto é que, e
quem sabe esteja sendo romântico, então peço perdão aos colegas, quando optei por seguir a presente carreira, dentre as abordagens, a única que me parecera querer abarcar o humano para além do indivíduo, para usar a linha do meu colega, fora a própria psicanálise, o seu objeto de estudo é uma transcendência do mero atendimento, tanto é que, falar em abordagem psicanalista é sim, um desmerecimento da própria. A psicanálise é psicologia? Duvido muito, e seria o caso de entrar naquela falácia de confundir a parte com o todo.
O pensamento de Freud, se fosse limitado a um “que fazer” dentro de quatro paredes, dificilmente haveria transformado a Cultura, e por consequência, a Civilização. Os conceitos são ricos pelas provocações, pois elas não surgem, mesmo Freud sendo bem academicista em muitos aspectos, da mera masturbação intelectual, ou seja, naquele prazer solipsista, fechado em si, poderíamos falar de certos iniciados, classes mais aptas a recebe-las que outras? Historicamente sim, no entanto, vou além, e, sem medo de parecer exagerado, direi que a psicanálise superou Freud, e, sim, desde um primeiro momento ele quis isso, por mais que as vezes o seu ego não deixa-se... Qualquer um que tenha lido sua obra com o espirito em aberto, sem procurar com prepotência uma lógica de ‘cancelamento’, de ‘refutação’, mas na espera de encontrar um algo a mais, sabe do que estou falando, olho para vocês colegas e questiono, alguém, hoje consegue visualizar determinada obra, ouvir determinada canção, sentir um perfume, um sentimento, o olhar e um toque, se alguém, acordando, perdido em pensamentos, à observar a paisagem do seu carro, em um filme, e outras situações mais, não procurar alguma interpretação? Algum símbolo? Ou melhor, senti-lo, quase como um prazer estético, uma intuição... essa habilidade, é algo intrínseco ao homem, na minha opinião, mas que o desenvolvimento da sociedade afoga, a falta de tempo mata, a superficialidade dos sentimentos assassina, contra essa maré, a psicanalise não somente é dique, mas, um moinho movido por este rio que nos traspassa chamado inconsciente.
A mitologia, o estudo da cultura, é mergulhar de cabeça, é se deixar levar por um mundo que o único preço, é aceitar nossa humanidade, perceber que o Outro, é uma extensão de nós mesmos e apenas existimos por esta relação.
Não é uma ode ao ser gregário, não me confundam, mas na simples lógica de que para sermos algo, devemos aprender com Hegel, que para tanto, não podemos ser aquilo outro, ou seja, Eu-sou o Não-eu.
Assim, nestes dois mitos, não tratamos somente de dois povos tão distantes de nós, pelo contrário, tratamos de uma história que é também nossa. O tabu que é a mulher, seguindo Joel Birman, não é um não homem, é sim, uma outra parte de todos nós, é a seele, a anima. Colegas, procurar essa coincidentia opossitorum dos alquimistas não é um devaneio ocultista, na verdade, percebam essa mesma palavra ‘ocultista’. Não! É como perfeitamente meu colega disse, procurar cisões, fugir de qualquer espécie de monada, já que não vivemos mais naquela caverna-útero dos taínos, em que os corpos se confundiam em uma unidade, como também já fomos expelidos por aquela sucuri yanomami, com o conhecimento a desenvolver, potencializar.
O psicanalista, no ato de atender, se atende, pois, ao contrário de outros, o humano é seu objeto teórico e prático em toda sua complexidade e infinitude, assim, sendo a Cultura a expressão maior da nossa conformação quanto seres humanos, a psicanálise, é filha e aprendiz, como mestra e mãe. Negar tal relação, é deixar órfã uma sociedade que almeja em ser interpretada, erroneamente, não nego, na procura de respostas na maior parte do tempo, mas, como confio em que meus colegas concordarão comigo, almejando principalmente, as respostas que possuem a forma de perguntas.
Muito obrigado.
A relação entre Psicanálise e Cultura que aqui pretendo apresentar parte de uma premissa inequívoca: a relação entre ambas é intrínseca, isto é, constituinte. Advirto, logo de início, que posso ser acusado de uma específica falácia: petitio principii. Espero, contudo, que ao longo da fala esse caráter intrínseco se torne mais evidente a todos nós. Todavia, para evitar que partamos já de um desentendimento, quero apontar de saída alguns elementos que indicam esse co-pertencimento, ou essa íntima co-participação.
Partamos do conceito de Cultura. Não o entendo aqui no sentido que aponta o filósofo italiano Giorgio Agamben em O homem sem conteúdo: da cultura burguesa, isto é, a produção de artes no sentido que o mundo anglo-saxão entende as fine arts: belas-artes, produtos refinados da cultura, poesia, música, literatura.
Prefiro pensar o termo Cultura no sentido alemão, formado pela tríade semântica Geist-Civilisation-Kultur. Por cultura entendem os alemães (ou a versão idealizada do Romantismo Alemão) a totalidade da produção humana, o complexo conjunto de obras que são resultado da ação do Sujeito. Não à toa, a divisão clássica das ciências entre os alemães, ainda hoje, é por um lado as “objetivas” Naturwissenchaften e do outro as “subjetivas” Geisteswissenschaften. Cultura implica aquilo que o sujeito humano, na sua contínua relação com a alteridade, faz que o humaniza. Não lidamos aqui com um termo fácil. A própria Antropologia Cultural, a Etnologia, o uso do método etnográfico, tem questionado esse conceito de cultura. Questionamento que aqui, infelizmente, não poderemos aprofundar, mas que deve ser mencionado.
Nesse sentido é que a Psicanálise é ela mesma um produto da Cultura, pelo simples fato de ser um produto da ação humana na tentativa de compreensão de si mesma. Ademais, não podemos deixar de advertir que a Psicanálise ela mesma é especificamente um produto da Modernidade. Ora, o conceito de Sujeito, a eminência dos afetos, as relações de alteridade que constituem a subjetividade numa clivagem fundamental, se por um lado foram expurgados da ciência positiva nascente no século XIX, na qual o próprio Freud foi formado e a mesma que ele questiona, por outro são temas que só podem ser pensados numa genealogia da subjetividade que se inaugura (na história tradicional das ideias) com problema do Eu em Descartes, que passa pelas noções de indivíduo no liberalismo inglês, pela Natura e pelas paixões de Spinoza, pela clivagem metafisicamente constituinte entre coisa-em-si e Sujeito em Kant, até chegar no seu paroxismo na filosofia de Hegel: onde o Sujeito absolutamente coincide com o Objeto. Sem falar da arte burguesa que pouco a pouco vai cravando no seio da cultura uma noção de interioridade, de privacidade, de mundo dos afetos... E por fim, e não menos importante, um problema do Sujeito que não pode ser concebido sem o desenvolvimento da teologia mística, especialmente de São João da Cruz, Santa Teresa de Jesus e dos Exercícios Espirituais de Santo Ignácio de Loyola e que chega ao seu ápice na espiritualidade francesa do século XVIII, com São Francisco de Sales: reconhecer-se através de uma ascese, de uma prática refletida e mediada por um discurso outro (o do diretor espiritual) para fazer vir-à-tona aquilo que nem o sujeito sabe de si mesmo, ainda que o pressinta.
Mas isso significa dizer que Freud é simplesmente um “moderno”? Sim e não. É um moderno no sentido de que as condições de possibilidade da Psicanálise estavam dadas já no problema da Modernidade. E, ao final de contas, todo homem é um homem de seu tempo. Mas não porque Freud continua simplesmente o projeto da Modernidade. Ao contrário, age como uma forma de má-consciência do “Moderno”.
O que entendo aqui por má-consciência? Eu a entendo no sentido da consciência infeliz hegeliana, isto é, como a consciência da cisão entre o singular mutável e o ideal, entre o que o sujeito é e o que deseja ser.
Mas a consciência infeliz só se encontra como desejosa e trabalhadora. Para ela, não ocorre que encontrar-se assim tem por base a certeza interior de si mesma; e que seu sentimento da essência é esse sentimento-de-si. Enquanto não tem para si mesma essa certeza, seu interior permanece ainda a certeza cindida, de si mesma. A confirmação que através do trabalho e do gozo poderia obter, é por isso uma certeza igualmente cindida. Quer dizer: a consciência deveria, antes, aniquilar tal confirmação; de modo que, embora essa confirmação nela se encontre, seja só a confirmação do que é para si: a saber, a confirmação de sua cisão. (Hegel, 1992, p. 146).
Freud não ignora o papel que a Psicanálise pode desenvolver como a má-consciência da Modernidade. A Psicanálise não é um ajustamento, uma adaptação, mas o esforço para fazer ver ao singular que seu modo de ser no mundo se dá em uma cisão fundamental. É um estranhamento radical de todas as formas culturais. Mas um estranhamento que só é possível porque mergulha suas raízes até o fundo da Cultura. Hegelianamente, apenas o Si pode estranhar o Si mesmo. Só pode ser crítica da Cultura quem se entende como parte da Cultura.
É nesse sentido sua obra se volta para a Cultura. O futuro de uma ilusão, Mal-estar na Civilização, Moisés e o Monoteísmo devem ser encarados como sendo um modo radical de crítica das formas culturais. Aliás, tendo a ler o Moisés até mesmo como um acerto de contas que põe em primeiro plano o judaísmo que marca as origens da Psicanálise, sem com isso fazer dela uma “ciência judaica”.
Freud, já em 1917, em Uma dificuldade no caminho da Psicanálise reconhece como esses três grandes produtos culturais da Modernidade, o Universo copernicano, a Biologia darwiniana e a Psicanálise provocam profundas feridas narcísicas no Sujeito: nem o centro do Universo, nem o ponto máximo da natureza, nem mesmo senhor racional de si. A Psicanálise pode ser muita coisa, menos o conforto egóico para um self autossuficiente.
Michel Foucault, no texto “Nietzsche, Freud e Marx” vai além. Esses três autores seriam o rompimento com as formas culturais anteriores da Modernidade, mestres da suspeita, que transformam a interpretação em um paradigma de saber. Talvez, pudéssemos juntar Nietzsche e Marx às feridas narcísicas: o Sujeito tampouco é senhor de sua moral e seu conhecimento; a produção de valor não é fruto da ação do indivíduo, mas de uma estrutura que ultrapassa em muito a ação singular.
De Copérnico a Freud: um saber feito a golpes de martelo. Deslocado do centro do universo e deslocado de si mesmo (já não há si mesmo) o Sujeito tem de buscar a sua posição frente ao desamparo que lhe é constituinte.
A Psicanálise, entretanto, não é uma forma de profecia de mau agouro. Ela não produz, ou não deseja, produzir sofrimento, mas reenvia o Sujeito, no dispositivo clínico, para o enfrentamento do seu páthos fundamental. Essa é, talvez, a maior descoberta analítica depois do Inconsciente: somos animais patológicos, animais afetáveis e que elaboram sua afetação na linguagem (páthos + logos).
A patologia do Singular não se encontra alijada da patologia da Cultura. Aliás, é isso que faz o Singular diferente do mero Indivíduo. Este é o não divisível, o átomo, a mônada, o fundamento de toda psicologia. O Singular é o resultado de uma singularização, de um processo que aloca o Sujeito, numa pertença im-pertinente, no interior da Cultura em que se enraíza, o que Lacan chama no Seminário I “situações da história” (Lacan, Sem. I, p. 19).
Não à toa, segundo o psicanalista Markos Zafiropoulos (2018), o retorno de Lacan a Freud se dá junto com o abandono do psicologismo individualizante e do familismo. Além disso, é a descoberta da Antropologia Estrutural de Lévi-Strauss que permite Lacan elaborar sua teoria dos três registros a partir da noção de “eficácia simbólica”.
Lévi-Strauss, que via em Freud uma espécie de mestre, identificava na prática psicanalítica e na cura xamânica uma semelhança inapagável. Ambas proporcionam a cura aos sujeitos a partir da elaboração de mitos que garantem a eficácia simbólica dos ritos. Mito, para Lévi-Strauss, não pode ser lido apenas na superficialidade da sua narrativa, mas no que de estrutural a narrativa elabora. Vale lembrar, mýthos e logos nada mais são que duas formas diferentes do discurso.
Mas há uma diferença crucial entre a cura xamânica e a Psicanálise. Na primeira, o singular oferece suas operações, mas o mito é mediado pelo xamã, isto é, uma instância coletiva. Para Lévi-Strauss, na análise o mito é fornecido pelo neurótico e são as operações do analista (a técnica analítica) que elaboram essa mitologia singular. Nesse sentido, a Psicanálise pode interpretar o xamanismo, mas o contrário não seria verdadeiro.
Eficácia simbólica é a recuperação do poder organizativo da linguagem. E essa é a estrutura fundamental compartilhada universalmente: somos seres de linguagem (zoón echón logón) que elaboram seu mal-estar singularmente, criam sua mitologia (sintoma) e que na situação de insuportabilidade do sofrimento oferecem essa mitologia a outro para que a torne operativa.
O retorno a Freud via eficácia simbólica permite à Psicanálise a continuidade de seu papel de má-consciência da Cultura em outro patamar. Agora, é possível ao método analítico ler com mais acuidade os sintomas que se organizam coletivamente e lhes oferecer sua operação. Isto, de maneira alguma, significa fazer análise social. Aliás, também a noção de social é fruto de interações na Cultura, e especialmente da noção de Indivíduo que lhe antecede. Por a linguagem ser estruturante do Sujeito e por sua mitologia individual sempre se constituir em uma situação histórica, ouvir o sintoma é ouvir a mediação singular da Cultura ou como o Sujeito elabora essa dimensão outra que lhe ultrapassa.
Os “sintomas” ouvidos pelos primeiros psicanalistas não eram meros indícios de problemas orgânicos. Eram sinais de conflitos, não apenas pessoais ou familiares, mas também ideológicos, políticos e históricos. Os sintomas eram eles mesmos conflitos condensados e expressos em uma espécie de palavra dirigida aos demais – fala. Eram o que a Psicanálise sabe escutar. (Parker, Pavón-Cuéllar, 2022, p. 40)
Aqui está o paradoxo em que nos movemos: a cisão, a clivagem. Reafirmamos que o Sujeito é constituído em uma clivagem e sem querer nos movemos numa replicação de cisões feitas de maneira equívoca. Ser Sujeito-Clivado não significa que o mesmo Sujeito está em uma separação-cisão total de todos os outros âmbitos, como se houvesse um sujeito da clínica e um sujeito coletivo. Ao contrário, significa que o que cliva o sujeito é também esse conjunto de cisões que são singularizadas em seu mito próprio. Caso contrário, teríamos de retornar à mônada, ao indivíduo, como categoria fundante e, por conseguinte, recairíamos em uma espécie de nosologia, de uma taxonomia que separa o indivíduo em quadros independentes.
Para encaminhar-me ao final, trago aqui dois eventos que talvez nos possam auxiliar em perceber essa im-pertinência, esse não pertencimento pertencente do Sujeito. A primeira, é a noção de Ator-Rede do filósofo, sociólogo, antropólogo Bruno Latour. Em Reagregando o Social Latour defende que é um equívoco teórico grave entender o social como uma categoria explicativa. O social não explica nada, ele que precisa ser explicado. Como é possível que nos reunamos em coletivos? O que mantém esses coletivos unidos? Bom, para ele é a noção de Ator-Rede. Afirmar que o social explica algo, ou que é uma categoria independente é crer em indivíduos autossuficientes, mônadas, que se associam livremente por uma decisão racional.
A formação de coletivos, entretanto, se daria de outra maneira. Vivemos em uma complexa rede de atores, humanos e não humanos, que em contínua interação formam diversas associações diferentes. O Sujeito é também fruto dessas associações: uma língua que não me pertence, instrumentos que moldam minha maneira de agir, uma família que não escolhi, tradições, mitos, ciências, compreensões de mundo as mais diversas, formam um Sujeito-Ator ele mesmo plural na sua constituição. Para fazer uma adequada descrição dos coletivos formados pelos sujeitos há que se fazer a difícil tarefa de ler os caminhos tortuosos que essas redes formam.
Penso muito em como a TAR (Teoria Ator-Rede) poderia nos ajudar a preservar a Psicanálise dos psicologismos, individualismos, da nosologias e taxonomias que transformam o patológico estruturante em apenas mais uma forma de classificação e adaptação dos Sujeitos. Esse seria o Evento “o que a Psicanálise pode receber”.
Mas, e o que a Psicanálise pode oferecer? Ainda tem o potencial de má-consciência da Cultura? Teoricamente, sim! Vejamos um exemplo bem contemporâneo. O ano de 2023 é o ano da Inteligência Artificial. O pânico e o otimismo desenfreado andam lado a lado, são a mesma coisa. Em todos os cantos se vê a I.A ou como um melhoramento da execução das tarefas humanas ou como a substituição perigosa dos humanos.
Em uma e outra visão a mesma ideia: que o propriamente humano é o racional, o executante, o agente, o trabalho, a produção. Ora, há algo que não vai bem aí! Onde estão a contradição e a falta? E a angústia e o desejo? Onde está o páthos-paixão-sofrimento que torna nossa experiência tão rica? A máquina pode resolver todos os problemas racionais do mundo, mas é capaz de produzir um mito? Singulariza a história coletiva em histórica subjetiva? É capaz de sofrer?
Cada vez mais creio que a futura ecologia humano-máquina precisará de contribuições da Psicanálise que é, ainda, uma tentativa de resposta à pergunta “o que é o sujeito?”.
1 Marcus Vinicius de Souza Nunes, Doutorando em Educação, Comunicação e Tecnologia (UDESC). Mestre em Educação (UFSC). Mestre em Filosofia. Professor na Coordenadoria Interdisciplinar de Tecnologias da Informação e Comunicação (CTS/UFSC). Membro do Movimento Psicanalítico Sul Catarinense (AMPSC)
Referências
FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas, Vol. XXI. O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Editora Vozes, 1992.
LACAN, Jacques. Seminários, Livro I. Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor 1986.
LATOUR, Bruno. Reagregando o social. Uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Salvador, Bauru: EDUFBA, EDUSC, 2012.
PARKER, Ian; PAVÓN-CUÉLLAR, David. Psicanálise e Revolução. Psicologia crítica para movimentos de liberação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2022.
ZAFIROPOULOS, Markos. Lacan e Lévi-Straus. Ou o retorno a Freud (1951-1957). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
Por Ana Paula Mazzuco
No Seminário 11, para explicar o vel alienante, Lacan cita a frase:“A bolsa ou a vida!”. Trás uma articulação com Hegel, supõe-se que alguém force o sujeito a escolher entre a bolsa e a vida. Se escolher a bolsa, perde as duas. Se escolhe a vida, tem a vida sem a bolsa, isto é, uma vida decepada. Há um fator letal aí dentro, que faz intervir a própria morte. Qualquer que seja a escolha, se tem ou a morte ou a liberdade amputada.
Por isto, ocorre o desaparecimento do ser, que é eclipsado numa grande parte de seu campo devido à própria função do significante. O sujeito é capturado e está assujeitado pelo significante. O sujeito dividido, alienado entre o ser e o sentido, quer ser tudo para o Outro, e preencher a falta do Outro materno com sua própria falta. A criança deseja ser o falo, esse é o desejo da mãe. A criança precisa assumir o desejo da mãe para estar assujeitada, pois não há sujeito, se não tiver um Outro que o funde. (Vel da 1ª operação essencial em que se funda o sujeito).
Ao explicar a alienação, Lacan enfoca o surgimento do sujeito no inconsciente. Trata-se da relação imaginária. A alienação corresponde à relação entre o sujeito e o Outro e sua constituição simbólica.
O Outro, representa o depósito dos significantes. O lugar de Outro que a mãe ocupa neste momento inicial, é oferecer significantes, através da fala.
E aí o sujeito fica submetido a um entre os vários significantes que lhe são propostos por essa mãe. Há sempre uma perda, pois o sujeito não pode dar conta e agarrar todos os sentidos dado pelo Outro.
Em termos da constituição do sujeito, a alienação é como se fosse uma escolha forçada. O sentido aparece no campo do Outro.
No segundo tempo, o que ocorre é a separação.
A partir do momento que opera a relação terceira, cai o objeto (a). É, então, pela função do objeto (a) que o sujeito se separa, deixa de estar ligado à indeterminação do ser ao sentido que constitui o essencial da alienação.
A separação é a busca da parte perdida do ser. O objeto aparece então como aquilo que subjetiviza o sujeito. Esta é a maneira esperada, para ocorrer a separação.
O círculo da tapeação representa a dialética do desejo. De mover o sujeito a buscar pelo objeto que lhe faltou um dia, e que determinou esse sujeito ser um sujeito em falta e desejante.
Nos 2 sexos a mãe é provida de falo - mãe fálica.
Depois a mãe é privada também.
Aparece a significação da castração. Onde temos a possibilidade clínica de localizar os sintomas.
Temos o sintoma que é uma metáfora e quer dizer ação do pai.
Na psicose o significante “O nome do pai” está foracluído da cadeia simbólica.
Não há repressão na psicose porque o significante não está inscrito. Um significante não se conecta a outro significante. Há fenômenos elementares, há sintoma delirante, ou seja, não há sintomas como na neurose.
Há um fenômeno elementar de projeção.
A psicose é uma possessão. O sujeito é invadido pelo Outro. Na psicose há uma fala - não linguagem. é uma linguagem esvaziada.
O psicótico não sabe discernir o eu do Outro - ele é invadido e se perde de outro.
Na psicose não há castração simbólica, e sim um imaginário. Há um corpo despedaçado, fragmentado que não faz imagem. O eu do psicótico é um eu que não se sustenta, se sustenta num outro. O imaginário não se sustenta.
Se o simbólico falha, o imaginário fica mal formado.
Complexo de Édipo
No seminário 3, Lacan aponta: “Para que haja realidade, acesso suficiente à realidade, para que a realidade não seja o que ela é na psicose, é preciso que o complexo de Édipo tenha sido vivido”.
Ainda salienta: “O sujeito é ao mesmo tempo ele próprio e os dois outros parceiros. É o que significa o termo identificação”. Isso é impensável se o Édipo não tiver uma estrutura simbólica.
A justa situação do sujeito humano na realidade depende de uma experiência simbólica, de uma experiência que implica a conquista da relação simbólica como tal.
Grafo
O grafo do desejo ilustra tanto a constituição do sujeito quanto o que acontece na análise.
Inicialmente o ser vivente vai buscar sua necessidade na mãe. Esta nomeia ao ser vivente suas necessidades.
O Outro (mãe) faz com que o ser vivente seja atravessado pela linguagem.
Uma vez atravessado pela linguagem, a falta já está ali, porque a linguagem não dá conta de tudo.
O sujeito barrado se torna um ser falante. Emite uma sequência de significantes, a qual o Outro vai dar um significado. O significante do Outro dá sentido a essa cadeia.
O desejo gera demanda. Esta demanda não pode ser satisfeita porque não recupera o objeto perdido.
A demanda sempre vai dar no S(A) - significante da falta do Outro, que é a castração. Pois esse Outro também será castrado. Na sequência, vai gerar fantasias inconscientes acerca do (Che voi?) - não se tem resposta. o que cabe é o preenchimento da lacuna da resposta pela fantasia inconsciente. Esta vai aparecer na linha diacrônica da fala - linha da livre associação. Essa fantasia rompe na forma de lapso.
Um significante se solta dessa cadeia tomado pelo analista que dá um sentido (o sentido do analista) para essa enunciação.
Completa-se o grafo com o I (a) - Ideal do eu, que é o que espera-se que o sujeito faça, julgue o que tem que fazer para ser aceito pelo outro da cultura e da sociedade.
A escrita deste ensaio é resultante de fragmentos que surgiram em meio a pandemia, o desgoverno e o cotidiano enquanto lugar de passagem ao ato. Muito pode ser dito sobre o que estamos vivendo no que refere a circulação da agressividade no campo do sujeito, ora via masoquismo e autodestrutividade, ora sadismo e destrutividade. É sobre as relações agressivas estabelecidas entre as diferentes instâncias psíquicas, que aparece uma semelhança: corpos identificados ao pai gozador da horda primitiva e a violência cotidiana diante do (in)familiar. Neste sentido, Freud nunca foi tão atual.
São tempos estranhos e boa parte da população brasileira tem conseguido enxergar o resgate de um passado nada distante, em que a gratuidade da violência disfarçada de liberdade de expressão, de manifestações antidemocráticas que exigem a intervenção do Nome-do-pai, da massiva enxurrada de falsas notícias e a saudação a uma bandeira que temem mudar de cor, desmontam a garantia dos direitos humanos a todos aqueles que não são humanos direitos, pois estão à esquerda do rei. “Consequentemente, o caráter fascista corporifica-se e atualiza-se nas ações e projetos políticos que reproduzem constantemente o totalitarismo de classe e a “defesa da ordem” através de meios reacionários e violentos. (FERNANDES, 1981, p.33 apud DIBBERN e CRISTOFOLLETI, 2017, p.18)2
A pulsão humana de agressão impera nos corpos não tupiniquins, em que Freud (1930/1996)3 nos propõe pensar, “a questão fatídica para a espécie humana parece-me saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pela pulsão humana de agressão e autodestruição. Talvez, com relação a isso, a época atual mereça um interesse especial”. (FREUD, 1930/1996, p. 151).
Além deste cenário, abre-se parênteses para o momento histórico em que a humanidade se encontrava até ontem, às voltas com uma pandemia causada pelo SARS- CoV-2 (Covid-19), chamado em segredo de alcova por “vírus comunista”, rompendo com o status quo social, demarcando tempos de privação, interdição e distanciamento em todos os sentidos. Aqui, operava o Real, o inominável da morte, estraçalhando corpos que se debatiam entre a falta de ar e a falta de significantes que contornassem o gozo mortífero encarnado em corpos engravatados pela negligência.
Diante da crise sanitária, a exigência pelo uso de máscaras como via protetiva para a minimização da disseminação da doença serviu também para velar a expressão de horror por detrás da mordaça protetiva, de todo aquele que subverte o legado do patriarcado, da religião, do tabu sobre o sexo e os mandatos imperativos do capitalismo. E é nesta direção do retorno ao recalcado que caminha a “Pátria Amada Brasil”, visando restaurar a sociedade centrada no essencialismo biológico, nos sabidos da idade das trevas, e pelo combate a hereges da estirpe de Galileu Galilei.
Talvez valha considerar que esse cenário presentifica uma repetição, a boa e velha repetição neurótica. Entendendo que aquilo que se repete se acha presente na transferência de um afeto que se inscreveu pelas trilhas identificatórias, “é uma transferência do passado esquecido[...]”. (FREUD, 1914/1996, p. 166)4, é sempre uma demanda de amor. Se a história da civilização é uma repetição neurótica, quem são esses sujeitos que identificados com o pai da horda primeva, gozador, fanfarrão, a fazem repetir? É sobre esses sujeitos que me ocupo pensar, pois eles estão em todos os lugares, na sala de aula, nas ruas, nas praças, no divã. São corpos errantes, pulsionais, a deriva, em que a espreita da própria pulsão de morte, violentam corpos, corpos pretos, corpos trans, corpos de mulheres e miseráveis, corpos desnudados e rotos. Há uma espécie de mal-estar diante do
(in)familiar.
No texto freudiano que leva esse mesmo nome, O infamiliar (1919/1996)5, Freud indica que há algo do secreto e do oculto que mesmo tendo sido recalcado pelo sujeito, quando vem à luz, provoca uma sensação angustiante de ser confrontado a algo do íntimo que o sujeito não reconhece como tal. Ou ainda, “nas antipatias e aversões indisfarçadas que as pessoas sentem por estranhos com quem tem que tratar, podemos identificar a expressão do amor a si mesmo, do narcisismo”. (FREUD, 1921/1996, p. 107).
Os filhos do Pai são movidos por um circuito pulsional, que construído pela palavra e afetado pela pulsão do Outro, vaza em discursos malditos, colocando em ato o caos, a violência. A pulsão como eco do Outro e como possibilidade de ser para o Outro. São as pulsões, conceito situado na fronteira entre o psíquico e o somático [...] como uma medida da exigência (FREUD, [1915]1996, p.127), que compõem o corpo, corpo este que marcado pelos afetos e narcisismo dos pais, “sofre” cortes na carne e gera marcas que fazem o ser. Pulsões são palavras, representações de palavras e representação de coisas, imagens e sons. O corpo é pulsional e fala, não aos moldes de Weil, mas, em sintoma, sonhos e atos. É konstante kraft, nunca se esgota, se identifica e, aparece o sujeito.
Pensar o sujeito, a forma como ele se relaciona em sociedade e os papéis que empreende, deve considerar sua psicodinâmica inconsciente, o processo de constituição subjetiva ordenada pela identificação. A identificação, conforme Freud (1921/1996), é a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa, ela desempenha um papel na história primitiva do Complexo de Édipo, é constitutiva. Diante disso, nenhum argumento é suficiente para convencer ou propor reflexões em certos sujeitos. Não se trata de convencimento, se trata de identificação, de constituição. Os sujeitos aqui pensados, ignoram qualquer pensamento que intente dialogar sobre a ordem instalada pelo fenômeno autoritário que propaga a antidemocracia. “[...] no desamparo os pais e as figuras de autoridade social continuam a ser vistos, mesmo na vida adulta [...] sendo provedores de segurança [...]”. (COSTA, 2019, p. 215). Seria o tirano aquele que ocupa o lugar do pai?
Freud, em Psicologia das Massas (1921), nos propõe pensar sobre o que psiquicamente mobiliza sujeitos a se agruparem? Aqui, comporia a questão, interrogando o que sustenta a admiração por um líder que legitima uma conduta fascista em muitos dos seus atos ordinários como chefe de Estado, que convoca a ditos nacionalistas e de exclusão? “Bastaria que disséssemos que na massa o indivíduo é colocado sob condições que lhe permitem se livrar dos recalcamentos de suas moções de impulso inconscientes”. (FREUD, 1921, p.81).
Logo, esses sujeitos não surgiram do nada, já estavam aí, apenas aguardando que alguém os autorizasse a expressão máxima de sua raiva, “[...]são justamente as manifestações desse inconsciente, que, afinal, contém tudo o que há de malvado na alma humana [...]” (FREUD, 1921/1996, p. 81) e que de alguma forma se identifica com as imagens em que se reconhece, “[...]quer dizer, com imagens impregnantes que, de perto ou de longe, evocam apaixonadamente a figura humana do outro, seu semelhante”.(NASIO, 1995, p. 117).
Não importa quem seja ou o que faça esse Outro, o que ocorre é o “[...] desaparecimento da consciência moral ou do sentimento de responsabilidade nessas circunstâncias, não oferece qualquer dificuldade para nossa compreensão. Há muito já afirmamos que o núcleo da chamada consciência moral é o medo”. (FREUD, 1921/1996, p. 81).
Quando jaz o medo e o desamparo é aplacado mesmo que de forma alienada a presença do pai, todos os filhos que não fogem à luta, emergem em massa e compõem o exército de um homem só. “Partimos do fato fundamental de que um indivíduo numa massa, devido à influência desta, experimenta uma modificação muitas vezes profunda de sua atividade psíquica” (FREUD, 1921/1996, pg.94) e, sobre estas modificações, sabe- se que algo já se achava presente enquanto organização psíquica, “[...] sua afetividade se intensifica extraordinariamente e sua capacidade intelectual se limita de maneira notável, e é evidente que ambos os processos estão orientados para uma adaptação aos demais indivíduos da massa [...]”(FREUD, 1921/1996, pg.94).
Toda história tem dois lados, essa é a minha versão, também pode servir aos “opositores”, eles podem dizer que isso é papo de comunista, e de que essa narrativa sobre o tirano, pertence a eles. De todo modo, são cenas que me angustiam. Resolvo com a cabeça no divã aonde me deito? É possível, porém a escrita também é meio de elaborar.
Ainda que esse ensaio se encerre aqui, a dinâmica dos corpos se perpetua num constante ir e vir, entre a vida e a morte, submetidos ao gozo do Outro e ao Outro do gozo. Mesmo que o destino da civilização seja previsível, “ignorância é ignorância; nenhum direito a acreditar em algo poderia ser derivado dela”. (FREUD, 1930[1929]/1996 p. 42).
1 Thais Wachholz. Mestre em Educação pela Universidade do Extremo Sul Catarinense - UNESC (2016). Especialista em Gestão Social de Políticas Públicas (2011), Psicóloga pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2003). Professora e Supervisora de estágio clinico em Teoria Psicanalítica das Faculdades ESUCRI. Psicanalista, supervisora clínica, membro da Associação Movimento Psicanalítico Sul Catarinense (Tubarão/SC). Participa do Grupo de Estudos em Psicanalise A trilha Freudiana (Criciúma/SC).
Temas de interesse: Clínica psicanalítica, e temas do contemporâneo: racismo, gênero e sexualidades
2 COSTA, V. F. H. A “personalidade autoritária”: Antropologia crítica e Psicanálise. Tese (Doutorado)
– Programa de pós-Graduação em Filosofia, USP, São Paulo, 2019. Disponível em: https://www.teses.usp.br/index.php?option=com_jumi&fileid=17&Itemid=160&id=47A5CEEEDEC4&la ng=pt-br. Acesso em: 19 setembro 2022.
3 FREUD, S. (1930 [1929]) O mal-estar na civilização. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
4 FREUD, S. (1914). Recordar, repetir e elaborar. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Um investigador fez a seguinte pergunta aos “Sete Pecados Capitais”: Como vocês gozam? Escolham seus pares para essa confissão.
A Ira, sem paciência, escolhe a Soberba, que está toda orgulhosa, à procura de alguém. E inicia:
- Ira: Você é arrogante, orgulhosa, se acha superior a todos e não admite isso. Não tenho receio em dizer que o meu gozo está em agredir, tanto física, quanto verbalmente.
- Soberba: Adoro ver as pessoas atrás de mim, iradas com o meu jeito de ser. Meu gozo está nisso!
- Ira: Você me irrita. Como não ser agressiva com você? Desse jeito você pede para apanhar.
- Soberba: Meu gozo em ser agredida denuncia o quanto eu mexo com você. Já você é muito intensa e raivosa, Ira! Isso demonstra fraqueza e falta de autocontrole. Coisa que eu tenho, no momento em que a raiva toma conta de mim, pois eu não externo minha ira. Eu mantenho a postura e não atendo a sua demanda.
- Ira: Tem autocontrole até demais, né? Penso que você queria ser como eu, mas não se permite, porque acha isso, como você bem mencionou, “uma fraqueza”. Mas, pensando bem, fraco é aquele que não mostra quem é. Eu demarco o meu poder usando a força. Gozo com isso. O que me deixa mais irada é que você se sobressai de forma elegante e eu fico como a “louca” da história.
- Soberba: E será que você não gostaria de ser como eu? Será que, ao invés das agressões, não gostaria de pôr as palavras de um jeito que irrite o outro de outra maneira? Acho você uma sádica, pois tem prazer em agredir.
- Ira: E você uma masoquista. Ao invés de revidar a agressividade, engole o orgulho e sofre quieta, porque, no fundo, você é o meu oposto.
O investigador intervém e diz:
Interessante a agressão, digo, confissão de vocês! A Soberba chamou a Ira de sádica. Mas será que a Soberba não passou pela experiência do sadismo um dia? Freud menciona que “o sadismo é uma atividade de violência sobre outra pessoa como objeto”. No caso da Soberba o objeto foi abandonado e substituído por ela própria. A meta da pulsão ativa se transformou em meta passiva. A meta da Ira se manteve na atividade no objeto.
Essa relação de poder através das confissões, demarca o quanto há de familiar em ambas, justo pelo estranhamento que uma vê na outra. Mas, lembrem-se, Ira e Soberba, essa discussão não fará com que os neuróticos libertem vocês, às claras, porque há uma cultura que as interdita.
A gula, bem angustiada, engole, quer dizer, escolhe a luxúria e menciona:
- Gula: Eu desfruto plenamente da vida. Há algo melhor que comer e beber? As pessoas acabam sempre se direcionando a mim. Se há uma comemoração, comem e bebem. Se estão tristes, também. No fim, tudo acaba em pizza e em brindes!
- Luxúria: Então, você introjeta os afetos, gula? Tampona o vazio e não vivencia o que sente.
- Gula: Tem razão, mas com você não é diferente, pois aciona os desejos sexuais diante de qualquer indício de angústia.
- Luxúria: Sim! E você pode ser, muitas vezes, um substituto meu, pois uma satisfação sexual que precisou ser reprimida, foi substituída pelo órgão da boca.
- Gula: Essa situação enigmática ecoa nos meus hábitos! Eu confesso! Eu tenho esse hábito significante, que me atravessa de forma subjetiva e significativa. Entendo você como uma pervertida, pois goza literalmente dos prazeres sexuais. A única transgressão que cometo é perverter o órgão genital por outro substituto, que, no meu caso, é a boca.
- Luxúria: Eu confesso que sou uma pobre infeliz que esvazia todo o gozo sem ter um espaço para desejar. Deixo o outro sempre com uma certa “inveja”, mas, você não imagina o tanto de energia que eu tenho que investir em uma única meta!
O investigador menciona:
Compulsão interessante! Desculpe, confissão. A Gula e a Luxúria buscam a mesma meta que é a satisfação, mas em objetos diferentes. Em Freud, a sexualidade é uma energia que percorre o corpo e passa por zonas erógenas. A Gula busca pela satisfação na zona erógena oral buscando no alimento a saciedade que nunca cessa. A Luxúria, por sua vez, fixa-se na satisfação genital propriamente dita, buscando, no excesso de objetos, o gozo.
Há uma certa relação entre o neurótico e o perverso nessa confissão, pois a Gula supõe que a Luxúria sempre goza “melhor” que ela. A Luxúria procura o gozo constante para se manter nesse lugar em que a Gula a coloca, mas se desdobra inteiramente para isso. O sujeito neurótico tem uma estreita relação com a culpa, quando deseja algo que não é aceito socialmente. Esta culpa se reverte em sintomas, como uma espécie de punição inconsciente, pelo fato de ter desejado. Para este sujeito poder experienciar a satisfação originária, goza no sintoma para lidar com a falta inscrita.
A Inveja cobiça a Avareza, que se encontra distraída, acumulando suas moedas.
- Inveja: Vai começar a conversa do apego! Confesse aí, vai! Você goza com o fato de acumular coisas.
- Avareza: Se eu me apego às minhas coisas, você se apega às dos outros, né?
- Inveja: Sim! Este sentimento de inveja está presente em todos os sujeitos, mas estes se culpam por me sentir. Então me reprimem, mas eu volto, seja pelo ato falho, esquecimentos... Afinal de contas, o que eu procuro está sempre no outro. Nunca em mim mesma. Como eu estou sempre em falta, quero que o outro também esteja, já que eu nunca vou ter o que o outro tem. Esse é o meu gozo.
- Avareza: Eu confesso que tenho medo de perder, mas não sei o quê. Por isso acumulo coisas e tenho dificuldades em dividir. Sofro com isso, mas, para aplacar o sofrimento, busco não perder. Nos sujeitos, eu funciono de maneiras variadas, mas o comum é aparecer de uma forma que o indivíduo não pode desfrutar da vida pela via da culpa. Aos seus olhos, eu tenho algo, porque guardo, mas você não sabe que eu não usufruo das coisas que acumulo. Eu me identifico contigo, porque invejo quem consegue aproveitar sem o temor de perder tudo, pois, no fundo, o meu gozo é não perder.
O investigador finaliza esse diálogo considerando:
O diálogo de vocês retrata a castração e o quanto as posições ativas e passivas habitam o sujeito. Este pode, em análise, confrontar-se com a possibilidade de se responsabilizar pelas questões de que julga ser vítima. A Inveja sempre vai ser a vítima, depositando no outro o que lhe falta. Já a Avareza, quer conservar sua vida temendo perdê-la ao mesmo tempo. Vive acumulando objetos ocultos, porque eles têm uma significância fundamental que é recuperar o que foi perdido imaginariamente. No contexto analítico, o sujeito se questionará frente ao gozo mortífero, abrindo mão deste, fazendo seu luto por adquirir um gozo frutífero do qual poderá usufruir de maneira que não lhe cause sofrimento e sim, desejo.
E você preguiça? Diz o investigador. Nem se esforçou para escolher alguém para o debate!
Preguiça: Ninguém me escolheu. Quem vai escolher alguém como eu, sem ânimo?
Não tenho interesse nesta discussão, porque isso me exige uma energia que não tenho. Me sinto vazia e incapaz de debater. É com pesar que eu me apresento:
Eu gozo da queixa sobre mim mesma. Mas confesso que minhas queixas são acusações. Pois deposito toda energia em um objeto específico e, quando este não me atende da maneira que eu almejo, a auto recriminação recai sobre mim. É como se fosse um trecho da música “evidências”: “quando digo que deixei de te amar, é porque eu te amo”. É como se eu quisesse pôr à prova o quanto o outro realmente me quer. E como eu disse que deixei de amar o outro, recriminando-o, o que acontece é um contra investimento da libido, pois tudo isso volta para o meu Eu. Nomeia-se isso, socialmente, como depressão. Posso me manifestar nos sujeitos de maneira sutil com características de cada um dos pecados já citados. É com imenso pesar que me despeço.
O Investigador menciona:
Suas escolhas são feitas sobre uma base narcísica. O investimento de objeto provou ser pouco resistente. A libido livre não se deslocou para outro objeto, mas se recolheu no Eu. Lá ela não encontrou uma utilidade. Apenas serviu para estabelecer uma identificação do Eu com o objeto abandonado. A perda do objeto se transformou em uma perda do Eu. Compreendo melhor o fato de você estar perdida nesse diálogo.
O investigador dá um feedback aos pecados:
Vocês se apresentam como o tormento dos sujeitos, porque vocês são desejos humanos. Todos vocês perderam para recuperar em algum excesso denunciando uma falta subjetiva. Isso é fazer o luto do falo, isso é pagar o pecado, é pagar a castração.
Moral da história:
“Lá onde isso era, é onde isso fala”. O que é isso senão manifestações do desejo inconsciente? Lá onde isso era pecado, isso retorna e enuncia o desejo recalcado.
A palavra “coração” que aparece nas poesias, nas músicas, nas gravuras, pode remeter à psicanálise pensar sobre o amor, já que em nossa cultura a palavra coração é comumente utilizada para dar sentido amoroso. E confesso que, quando pensava o que escrever para este meu primeiro trabalho em uma jornada, o coração apertou, revelando o quão angustiante que é o processo de escrita. Mas depois senti o amor saindo pela boca em forma de palavras. Está aí o tal do coração saindo pela boca.
Expressões como: “coração partido”, “coração apertado”, “coração saindo pela boca”, “coração esburacado”, podem remeter à angústia. Esse se deparar com a castração nos leva ao amor, que se produz no encontro de sujeitos faltantes, lugar castrado. Afinal, se fala por aí na tal completude, onde cada um precisaria encontrar a tampa de sua panela, a sua outra metade, aquilo que não se tem e se supõe que o outro tenha. Mas amar é se reconhecer em falta e reconhecer o outro em falta. É um esburacamento. Sustentar uma relação amorosa pode ser para todos, mas não para qualquer um, onde a falta de um encontra a falta do outro.
Assim, o amor está em todo lugar que falta. E nas experiências clínicas, a escuta é sobre o amor, as relações amorosas que cada um vivencia. O complexo de Édipo se torna peça chave na escuta pelo desejo do sujeito, em que podemos constatar na fala de Lacan ([1957-1958] 1999, p. 167):
O que o inconsciente revela, no princípio, é, acima de tudo, o complexo de Édipo. A importância da revelação do inconsciente é a anamnésia infantil, que incide sobre o que? Sobre a existência dos desejos infantis pela mãe e sobre o fato de esses desejos serem recalcados. E não apenas eles são reprimidos, como se esquece que esses desejos são primordiais. E não apenas são primordiais, como estão sempre presentes. Foi daí que partiu a análise e é a partir daí que se articula um certo número de indagações clínicas.
Ao lembrarmos sobre o início da clínica psicanalítica, as indagações sempre estiveram presentes, o que tornou possível Freud avançar na teoria. Faria (2021, p. 08-09), aponta Lacan em seu retorno à Freud e coloca: “[…] a essência do Édipo não está na trama imaginária da relação incestuosa da criança com a mãe e de rivalidade com o pai, mas
naquilo a que essa trama dá sustentação: a estrutura simbólica que orienta o desejo em torno da dialética falo-castração.”
Na clínica psicanalítica, as novas relações amorosas que o sujeito traz são escutadas nas suas primeiras relações objetais, ou seja, apresentam atualizações identificatórias, na medida em que revelam a sua passagem pelo complexo de Édipo. O saber fazer laço não é algo que trazemos em nossa bagagem quando viemos a este mundo. Somos seres de linguagem. E Dolto ([1987] 2018, p. 20) marca com clareza em sua fala:
Eis como podemos entender que tudo é linguagem, e que a linguagem, em palavras, é o que há de mais germinativo, mais fecundante, no coração e na simbólica do ser humano que acaba de nascer. Ele só pode se desenvolver num corpo, homem ou mulher, se estiver relacionado com uma voz de homem ou de mulher, com uma outra voz associada à de sua mãe. O "outro" nem sempre quer dizer masculino. Refere-se antes a um impacto importante entre ele, sua mãe e uma terceira pessoa.
A dissolução do complexo de Édipo pode possibilitar ao sujeito se voltar para novos objetos amorosos. Quando isso não acontece, Dolto ([1971] 1988, p.83) sinaliza que: “Há rapazes que ficam amorosamente fixados na mãe deles; o seu comportamento caracteriza-se pelo fato de não procurarem “seduzir“ ativamente mulher alguma.”
O complexo de Édipo abarca um extenso e intenso trabalho de estudo. Então termino com a provocação para debruçarmos sobre os casos clínicos e as relações amorosas que transitam pela clínica psicanalítica. Sabemos que, em psicanálise, a clínica antecede a teoria. E Freud foi quem nos mostrou isso, através dos seus casos clínicos publicados. O convite se faz para pensarmos o amor através de nossas clínicas, incluindo o trabalho de escuta psicanalítica realizado nos setores de saúde pública, lugar este que me faz pensar no quanto a psicanálise se faz presente onde existe a escuta de um analista.
Referências
DOLTO, Françoise. (1971) Psicanálise e Pediatria: As Grandes Noções da Psicanálise. Dezesseis Observações de Crianças. 4 ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.
DOLTO, Françoise. (1987) Tudo é linguagem.. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes – selo Martins, 2018.
FARIA, Michele Roman. Constituição do Sujeito e Estrutura Familiar: O complexo de Édipo, de Freud a Lacan. 3. ed. Taubaté: Cabral, 2021.
LACAN, Jacques. (1957-1958) O Seminário: as Formações do Inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
As vozes da ‘boa moral’ cantam em uníssono a virtude viciosa do marquês, todos os adjetivos, que servem para descrever a volúpia no seu vermelho mais satânico, serviriam para aviso de todo aquele, ‘jovem infeliz’, ‘velho depravado’, moça devassa’, que optara por se aventurar nas linhas de Sade. O binômio dos séculos que nos separam de tal figura, foram mais felizes a esta, do que precisamente a seus opositores. Por acaso, hoje, no popular e não em círculos mui eruditos, alguém conhece um livro moral de seus detratores, um daqueles que pululavam nas bancas da hipócrita burguesia?
Hipócrita. Hipócrita. Três vezes hipócrita para com aquele que foi definido por Apollinaire “o espírito mais livre que jamais existiu no mundo” (SADE, 2018, p. 217).
Não busca-se neste pequeno artigo a produção de um ensaio que o tome na sua complexidade e completitude. O espaço não permite e a própria intenção por trás das palavras aqui presentes, não esta tão interessada em abordar sua biografia e o corpus de suas obras. A intenção, como o título deixa em evidência, é precisamente o teor de uma obra específica a partir de uma óptica psicanalítica.
Se, compartilha-se da definição do poeta como sendo a “criança que brinca” (FREUD, 2021, p. 54), e que, com essas brincadeiras, “o adulto pode, então, se lembrar com que grande seriedade ele conduziu suas brincadeiras infantis e, na medida em que equipara suas pretensas ocupações sérias com estas brincadeiras de criança, se desfaz de todas as pesadas opressões e alcança o maior ganho de prazer, o do humor” (FREUD, 2021, p. 55), conclui-se que a literatura é “a infância enfim reencontrada” (BATAILLE, 2020, p. 9). Mas, não é essa infância vista pela óptica da psicanálise como algo além de um período de inocência? Onde se encaixa nisso o pequeno perverso polimorfo (FREUD B, 2021)? Assim, a literatura na sua essência trabalha o Mal, não no sentido moral-cristão totalmente pejorativo, mas da satisfação que precisa ser saciada, e que, encontra em tal meio, uma válvula de escape que sublima o desejo ao mesmo tempo que permite que o leitor se encontre com o escritor na sua simetria como ser (FREUD, 2021).
O Mal é criador na perspectiva que não trabalha com o comodismo e, precisa ser ativo, pois, como a salvação, agora usando o valor afetivo cristão, não faz sentido de ser sem a condenação, da mesma forma, o Bem, ganha suas características nesse embate. A definição de são Agostinho como o Mal sendo a falta do Bem, talvez fosse mais correta se invertida, pois, se Deus estivesse saciado, qual o sentido da criação do Homem para ser criado e logo salvo? A ordem
não seria um caos ordenado? (ROUDINESCO, 2008; BATAILLE, 2020; SADE, 2018; FREUD, 2021). Fica claro, por consequência, que busca-se abordar o homem pelo Homem, ou seja, o espelho da alma que retorna sua imagem para o coração. A essência construída em contato com um Outro, que se revela após conseguir forma, na literatura, na capacidade da linguagem.
Tanto é assim que, o comentador e tradutor de sua Filosofia na Alcova, Contador Borges, reitera a importância da linguagem na criação literária sadiana. Isso se deve a que como foi exposto, a linguagem é por natureza subversiva, a linguagem é criadora, e principalmente, e nisso Sade o exagera na figura didática do personagem Dolmancé, a linguagem permite a democracia em comparação com o autocracia da figura Divina que se ab-roga do direito de ser único Criador (SADE, 2018). A linguagem, não surgindo do nada, ex nihilo como diriam os teólogos, faz a linguagem ser uma vivência e possuir uma história, e só é vivo e histórico, aquilo que é material, que tem, Corpo, ou seja, apenas se reflete no espelho aquilo que pode ser visto, só pode ser analisado o analisável (FREUD, 2021).
Na obra em questão, Dolmancé e um incestuoso casal de irmãos procuram, com a desculpa da educação, que, mais seria, nesse contexto, fielmente adjetivada como ‘deseducadora’ pois subverte a imperante, o desfloramento da jovem e supostamente inocente Eugénie (SADE, 2018). Ou seja, o estupro. Supostamente, porque a inocência não existe quanto categoria idealizada, e sim, sua corrupção como consequência das paixões que são inerentes ao ser (FREUD B, 2021). Em outras palavras, figuras que se auto-posicionam como de autoridade exigem o direito a definir o processo de aprendizado do gozo de uma outra, submissa, que antes do processo de descoberta por motus próprio, serve com alimento da lascívia de seus professores, tanto nesse caso específico, como no sadismo da repressão a partir dos desejos não satisfeitos destes (SADE, 2018; FREUD B, 2021).
Freud nos adverte dos perigosos de tratar a juventude de forma complacente, Freud, nos adverte, de que, antes de proteger os bons costumes, isso apenas serve para mascarar nossa própria perversão (FREUD B, 2021). Surpreende a polêmica que ainda gira um século depois da óbvia constatação que a criança é um sujeito sujeita ao gozo? Pergunta-se, de quem é o interesse a manter tal ignorância? (ROUDINESCO, 2008).
No entanto, o conto transcende a descrição da corrupção de uma menor. O conto trata de uma menor que não é aquela de carne e osso, e sim, aquela que se
compõe de seres de carne e osso, mas, que se passa a chamar em seu conjunto, República (SADE, 2018). 1795, a Revolução Francesa passa pelo período do Terror e assoma-se, vindo de um horizonte áureo, o Império. A liberdade proclamada ao mundo se transforma em Napoleão Bonaparte. Assim, Eugénie é a Republica que precisa completar seu processo de independência, seu processo de autonomia, e esta, apenas é possível, através do olhar que se volta ao seu interior, para sua sombra, para o negror de sua natureza (ROUDINESCO, 2008). Somente encarando o lado não proclamado e evidenciado poderá evitar-se que este acabe por dominá- la.
Assim, da mesma forma que uma neurose pode se construir, um autoritarismo, compartilha de seus princípios, pois tanto um como o outro evitam e reescrevem a realidade a partir de uma fantasia, que, tem como função, saciar em um campo a realidade insaciada (FREUD, 2021; FREUD B, 2021). O autoritarismo não precisa ser chamado a plenas luzes de autoritarismo, como a neurose não precisa ser chamada como neurose. Os eufemismos existem para isso, para que as mentiras possam fazer das verdades algo mais digerível. A imaginação é um campo onde o censor e a censura podem se confundir, onde os símbolos não variam de conteúdo mas sim de forma.
Logo, e entrando na transcrição que o artigo procura fazer, e um pouco para desagrado de Paulo Prado, que procurava com sua última oração em Retratos do Brasil uma esperança com “a confiança no futuro, que não pode ser pior que o passado” (PRADO, 2021, p. 144), resulta que a primeira que abre o ensaio tem muito mais força, “numa terra radiosa vive um povo triste” (PRADO, 2021, p. 39), e é uma realidade constante, pois, insaciada. Assim, amparado no seu argumento, de que nossa estrutura, quanto país, tem como pilares a ambição e a luxúria escondidas por trás de uma religiosidade superficial e uma submissão humilhante que alguns defendem como simpatia, o popular, não tinha como não forjar, o adágio irônico de que ‘Deus é brasileiro’, pois, o que se queria mesmo, é a nacionalidade do outro ser mítico, somos Eugénie, inocentes apenas na máscara, terreno fértil para professores como Dolmancé, mas que se pagam de messias.
A onda de violência e intolerância que inunda nosso país, tem como lema “Deus, pátria e família” e como seus arautos, os ‘cidadãos de bem’, como na Revolução supradita, uma classe defendia o sentimentalismo em voga que predicava uma retomada do “bom selvagem”, ou seja, da natureza ideal de uma
bondade apriorística, não ouvida, oprimida dentro do homem, uma nostalgia pelo passado, e como o fazia? Através de bacanais de sangue e orgias de opressões. Ou seja, pedir paz por meio de gestos de arminhas.
A defesa de uma nova República em Sade, não é a defesa da retomada de Sodoma ou Gomorra, uma Res puta, é a defesa de uma Res pública não hipócrita, que na sua contradição encontre a síntese que revele que o Bem é a máscara do Mal, e que, deixe claro, que a sociedade não foi construída por um contrato entre partes felizes que viviam no Éden das não-paixoes, mas, sua construção está associada como a forma que a autoconservação do homem encontrou para um mínimo de felicidade poder ser vivida, que o medo e a desconfiança em relação ao outro pudesse ser convertida em parceria e comunidade, um verdadeiro Contrato Social (ROUDINESCO, 2008; BATAILLE, 2020). Ser feliz em segurança, exigia para tanto, um sacrifício, a criação de um inferninho de hybris. Atacar os costumes, antes de reforçar a licenciosidade é atá-la em uma nova forma de costume por escolha e decisão, racional e natural, como predicava Sade (SADE, 2018), pois, a mediania é uma consequência tão natural como duas moléculas de hidrogênio em contato com uma de oxigênio formam a água. A meta da civilização é a sublimação, não perversão com outro nome (FREUD B, 2021), não sensibilidade e religiosidade abjeta que promove a maioria da infelicidade e a felicidade gozadora de alguns poucos iniciados e privilegiados (SADE, 2018). Quando se perceber que o defeito do outro é o defeito adormecido (ou desperto e não compreendido) de nós mesmos e que a criança perversa é o adulto reprimido, passa-se de ser refém das paixões a dono destas (FREUD B, 2021).
Por que se exige e se aceita um controle do corpo então? Por que se declara uma moralidade que claramente ninguém segue além das próprias palavras? Porque todo controle é uma relação de poder e deve-se observar primeiro quem é que a declara e com que intenções, o mais provável, como nos adverte Sade, é alguém querendo levar suas potencialidades de volúpia ao máximo a custa de outros, típico partenaire (SADE, 2018). Não, não é simbolo de “populacho” a devassidão, a diferença, é que, quando o protagonista é rico suas aventuras viram filme,best seller ou presidente, quando pobre, desculpa para a higienização moral. A paródia do francês é contra sua própria classe, é um riso descontrolado que se depara com a contradição dos ditos defensores dos bons costumes. Com ironia, o que vale mais, não cometer o assassinato porque realmente não se quer, ou,
querendo-o, não o cometer por um tabu? A história esta ai para demonstrar como o “não matarás” é cheia de asteriscos. Também esta ai, para mostrar como os que antes foram bode expiatório se transformam nos seus próprios sacrificantes (ROUDINESCO, 2008).
A psicanálise não é um passeio pelos jardins da ilusão positiva. Não é autoajuda, coaching ou estampa de camisa e caneta. Não é mero nome, rótulo, para compensar uma questionável autoestima na forma de prepotência ou preconceito. A psicanálise não segrega, não fecha os olhos e não como o avestruz, esconde sua cabeça em covarde buraco para combater a ignomínia do mundo. A psicanálise é branco e negro, na forma da compreensão do cinza, antes de relativizar, apresenta a escolha, e, se o determinismo é psíquico, o convívio com outros é uma construção de mão dupla. O resto é silêncio, nossas paixões, barulhentas.
REFERÊNCIAS
BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Tradução de Fernando Scheibe. 1. ed.; 2. reimpressão. - Belo Horizonte: Autêntica, 2020 – (Filô-Bataille).
FREUD, Sigmund. Arte, literatura e os artistas. Tradução de Ernani Chaves.- 1. ed.;
4. reimpressão – Belo Horizonte: Autêntica, 2021 – (Obras Incompletas de Sigmund Freud; 3).
FREUD (B), Sigmund. Amor, sexualidade, feminilidade. Tradução de Maria Rota Sálzano Moraes. - 1. ed.; 4. reimpressão. - Belo Horizonte: Autêntica, 2021 (Obras Incompletas de Sigmund Freud; 7).
PRADO, Paulo. Retratos do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. Organização Carlos Augusto Calil.- 10 ed.; São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
ROUDINESCO, Elisabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Tradução de André Telles; revisão técnica Marco Antonio Coutinho Jorge. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Zahar, 2008 – (Transmissão da Psicanálise).
SADE, Marquês de. A filosofia na alcova, ou, Os preceptores imorais. Tradução, posfácio e notas de Contador Borges. São Paulo: Iluminuras, 1999.- 7 reimpressão, 2018 - (Coleção Pérolas furiosas – dirigida por Contador Borges).
É de ano em ano
Que o Enlace Freudiano promove uma reunião.
Grupos se enlaçam
A fim de uma constante formação.
Alguns textos já estudados serão citados:
Em “Sobre a Psicopatologia da vida cotidiana,”
Compreendemos que o próprio sujeito se engana.
Em “Além do Princípio de Prazer,”
Freud nos desafia a escutar o sujeito para além do adoecer.
Já em “Inibição, sintoma e angústia,”
Nos faz compreender o funcionamento da clínica das neuroses,
Colocando em outro patamar o entendimento sobre as perversões e as psicoses.
Este ano “A formação do analista” é o tema escolhido.
Um título instigante e que não deve ser esquecido.
A preocupação em estudar a teoria faz parte da nossa formação,
Mas não é só isso que sustenta um profissional,
Pois a tríade: supervisão, análise e estudos é um conjunto essencial.
Estamos estudando e produzindo com os pares.
Em nosso meio damos a isso o nome de “Enlace”.
O texto “Sobre o Ensino da Psicanálise nas Universidades”
Nos revela que foi importante para a Psicanálise se expandir naquele momento,
Pois foi reconhecida como um campo do conhecimento.
Já no texto “A questão da análise leiga,”
Houve a tentativa de esclarecer a um interlocutor o funcionamento do método,
Questionando se a Psicanálise precisaria ser exercida somente por médicos.
O percurso dos estudos têm como base as leituras sobre Freud.
Os conceitos que envolvem a histeria são indispensáveis
Para explicar as outras neuroses.
A repressão tem como base fundamental
O fato de que toda neurose se baseia em um conteúdo sexual.
O discurso acima mencionado
Foi o ínicio de um trabalho formalizado
Que ajudou Freud a fundamentar, em última análise,
O que viria a ser a Psicanálise.
O deslizamento da escuta médica para analista
Fez Freud se deformar, pois precisou investigar.
Essa troca de posição foi um risco,
Pois aí já se tratava de lidar com o seu próprio narcisismo.
Sair da posição do amado para ser o amante
É sofrer deformação,
Pois o manejo exige muita investigação…E, às vezes, por que não uma intervenção?
Formar o inconsciente do analista para analisar
Não é simplificar o método,
Porque o sujeito fala livremente associando aos seus afetos.
Vou ser cirúrgica em dizer que… É preciso estudar o sujeito do inconsciente,
Se deformar emprestando o seu ser,
Compreender sem se envolver.
Acolher demanda sem atendê-la,
Pois é assim que a análise se apresenta
Caso contrário, não se sustenta
Aquele que escuta sem ceder ao desejo é o analista.
No entanto, não cabe reduzir o sujeito a situações imediatistas.
O sujeito do inconsciente não é um fantoche cultural
O aparelho psíquico filtra os significantes
Experienciando o processo individual
O sujeito se aliena a cultura do desejo dos ditos parentais
Que interpretam os modelos culturais
Ele não é só um alienado ao Outro
É um efeito de separação
Eis aí o processo de subjetivação!
É necessário estudar a partir da teoria fundamental da formação:
Inconsciente, transferência, repetição e pulsão.
Estudar a partir da estrutura que sustenta todo um edifício,
Fica subentendido de que se trata o nosso ofício.
É! E pensar que Freud poderia ter sido um simples neurologista!
A manifestação do sofrimento talvez seria questionada de maneira simplista.
E Lacan não seria um psicanalista.
Agora serei breve…
A escrita é um laço que nos instiga a questionar
Sem simplificar que…
A formação que se demonstra atemporal está sendo questionada atualmente,
Mas é preciso falar de tempo lógico em uma formação que trata do inconsciente!
O autorizar por si mesmo vai perdendo a clareza,
Ganhando aos poucos o status de certeza.
A certeza que nunca temos têm desdobramentos
E assim… damos abertura aos questionamentos.
Em um circuito pulsional, o sonho e o chiste se encontram. O sonho segue seu percurso à toda para uma revelação, e se apresenta como o amado. O chiste nomeado como o amante, insistente para ser revelado através de um riso, avista o amado e os dois começam um diálogo.
O amado começa dizendo: Oi, parece que eu te conheço.
O amante responde: Igualmente!
Ambos mencionam: Vish! É bucha. Quando começa-se com esses discursos é certo que estamos projetando figuras parentais no outro.
Amado: Há muito tempo eu nasci de uma interdição. Eu sou um substituto de uma satisfação pulsional. Retornei agora em forma de um sonho por uma exigência que volta e meia me é acionada. Não sei porque me chamam. Quando estão perto de me revelarem não querem nada comigo e volto a ser recalcado. Me sinto como um ioiô pelo movimento de presença e ausência. Sofro várias transformações até que me compreendam e saibam lidar comigo. Por isso nem sempre me apresento como um sonho. Mas enfim… sou o sintoma mascarado conhecido como o amado.
Amante: Interessante. Eu nasci de uma perda. Fruto de um desejo que não pôde ser experienciado pelo sujeito. Estou aqui por um mandato urgente na tentativa de fazer com que o vivente lembre que eu existo e me assuma do jeito que eu sou. Estou em forma de um chiste.Tenho que parecer um palhaço para ser aceito. Tenho que me desdobrar e insistir que o sujeito me reconheça e saiba lidar com minha aparência engraçada. Espero que ele me decifra e entenda o que eu quero revelar, porque estou me virando do avesso para que o sentido aconteça para o sujeito. Por tentarem me eliminar, me sinto sempre em falta. E incessantemente busco um complemento. Tenho sempre a crença de que a minha outra metade está no outro. Eu sou um faltante, conhecido como o amante.
Em coro, os dois dizem: É com imensa parcialidade de prazer que nos apresentamos como os sintomas. Estamos aqui para dar prazer momentâneo ao sujeito.
Amante: Parece até um sonho conhecer você. Tenho a sensação de que você sabe o que eu desejo. Mesmo eu não sabendo o que me falta, já estás me fazendo tão bem! Só falta acertar alguns detalhes, como por exemplo, que você queira e que deseje o meu desejo.
Amado: Mas eu sou um sonho às vezes! Será que esse meu ar de mistério em forma de máscara é que te deixa sempre com essa tal chamada falta? Não sei o que você viu em mim. Até parece que você está brincando comigo.
Amante: Relaxa! Eu sou um chiste às vezes!
Em coro, os dois mencionam: Somos o par de opostos fálico e castrado que se complementam imaginariamente. Pois o amor é narcísico. O outro é um mediador para a tentativa da busca de completude.
Amante: Como sofremos transformações, o que acha da tentativa de nos unirmos no amor, já que na relação sexual não deu certo? Você promete pra mim através da fala o impossível?
Amado: Perfeito! Te prometo o céu, as estrelas, as gotas d’água do oceano e o infinito. Mesmo sabendo que isso será impossível, sei que você vai querer sustentar essa relação. Porque as palavras são uma tentativa de expressar o quanto eu te desejo. E eu acho isso fantástico porque não haverá monotonia em nossa relação, pelo motivo de você querer sempre algo a mais.
Amante: Tudo bem. Mas para você ser meu sintoma, tens que fazer o contrário do que eu demandar. Porque eu sou um faltante. Vou listar para você algumas situaçãoes: Se eu for um masoquista e pedir para você vir de chicote, de algema e corda de alpinista para fins de tortura, terás que negar na condição de sádico; Se eu for um obsessivo e pedir a você para organizar minhas coisas, na condição de histérica, você deverá bagunçar. E ainda terás que dar um jeito de fazer eu reclamar, senão não terá graça.
Em coro os dois dizem: Estão percebendo que o que nos liga é essa relação de fantasias e desejo insatisfeito?
Amado: Parece que eu já vivenciei essa relação antes. Minha mãe vivia reclamando de meu pai. Eu odiava ver ela reclamando e meu pai se desdobrando para satisfazê-la. E agora eu encontrei você que vem com exigências parecidas. Não sei por que me apaixonei por você, já que eu não gostava disso na relação deles.
Amante: Estou tendo um dejavú. Meu pai fazia tudo para minha mãe. Tudo ao contrário do que ela pedia. Ele fazia do jeito dele. Eu vivenciava tudo aquilo e me gerava muita angústia. Eu repetia para mim: quando eu namorar com alguém vai ser alguém totalmente diferente dele. Agora eu encontrei você e me vejo fazendo tudo ao contrário do que eu tinha almejado. Você não está me satisfazendo totalmente e poderia se esforçar mais no que faz e diz pra mim.
Em coro os dois mencionam: Nosso amor não é puro. É a repetição de experiências já vividas. É repetindo que temos a chance de resgatar nossos conteúdos fantasmáticos e transferir para o outro nossos fantasmas. Nosso objeto amoroso não é original, e sim do paraguai, é um substituto.
Amado: Será que você não está investindo sua energia libidinal demais em mim?
Amante: Mas você não cantou aquela música que eu adorei: “investe em mim, aposta tudo em mim, que eu prometo te fazer feliz”? Mas pensando bem, não devo investir toda a energia nesse sentimento. Tenho que medir isso. Porque li e entendi em um livro de Freud que pessoas como eu correm o risco de adoecer quando o investimento libidinal fica todo no objeto. Isso ocorre porque eu te superestimo e te idealizo demais. Você me entende?
Amado: Claro que entendo. Eu sei que você está perdendo parte de seu narcisismo me amando. E sei que para recuperar essa parte só se você se sentir amada para reavê-la. Por isso que eu tento encontrar maneiras dentro de minhas possibilidades para te satisfazer parcialmente. Porque eu sei que por mais que eu tente não conseguirei te complementar, mas sei que eu tenho que supor isso em você.
Amante: Você está querendo dizer que me enganou esse tempo todo?
Amado: O nosso acordo pelo que entendi foi exatamente assim: “eu te engano e você finge que acredita”.
Amante: Você é um insensível. Se eu soubesse que você iria me enganar, jamais me envolveria com você. Conferi todas as minhas virtudes em você.
Amado: Recapitulando a nossa conversa: você que exigiu tudo isso, lembra? Você me pediu que eu não satisfizesse sua demanda. O que falta em você não está em mim. O que você amou em mim foi uma fantasia sua encarnada na minha pessoa. Só isso.
Amante: Você não passou de uma fachada. A trilha sonora de Marília Mendonça me representa: “Me apaixonei pelo que eu inventei de você”. Segue teu circuito que eu sigo o meu. Ah! você só podia ser um sonho mesmo, na realidade isso nunca iria existir.
Amado: E eu pensando que você só estava brincando com tudo isso. Eu só entrei na brincadeira. Afinal, você é um chiste, tentei te satisfazer em uma brincadeira e mais uma vez não deu certo. Você amou o seu desejo e não a mim. Mas vamos conversar para consertar isso.
Amante: Não! Vou buscar em algum percurso desse circuito pulsional um outro sintoma que me complete, afinal, eu sou um sintoma castrado e em falta. Você pra mim não passou de um sonho.
Amado: Tudo bem, vou tentar iludir outro sintoma com a minha condição de fálico.
Em coro os dois finalizam: O amor aparece como condição de felicidade. Mas nos sentimos indefesos quando amamos e infelizes quando perdemos o amor do nosso objeto amado.
Por fim, o sujeito acorda e diz: Nossa! Acabei tendo um sonho engraçado. Como isso quer dizer algo sobre mim, levarei para minha análise hoje.
O tema “Corpo na psicanálise”, escolhido para este ano, trouxe muitas reverberações sobre o meu corpo na psicanálise, o meu percurso enquanto analista em formação. Tal formação do analista que muito se falou, e entre tantas falas fundamentais, pensei no retorno à Freud proposto por Lacan.
Lacan retorna à Freud, diria eu, não apenas eu, de forma genial, pois lá se falava em linguagem, em 1900, na “Interpretação dos sonhos”, quando Freud descreveu os mecanismos de condensação e deslocamento, desempenhando uma função homóloga à metáfora e metonímia no discurso, para Lacan. Faria1 também explana sobre o retorno de Lacan à Freud, como um caminho para reconduzir os psicanalistas aos fundamentos da teoria freudiana, dando ao Édipo sua devida importância, sua essência que sustenta a estrutura simbólica, que orienta o desejo em torno da dialética falo-castração, onde Lacan avança com a fórmula da metáfora paterna.
Sobre a verdade em psicanálise, Lacan2 pontua: ”É por isso mesmo que o inconsciente que a diz, o verdadeiro sobre o verdadeiro, é estruturado como uma linguagem, e é por isso que eu, quando ensino isso, digo o verdadeiro sobre Freud, que soube deixar, sob o nome de inconsciente, que a verdade falasse.” E Lacan retorna à Freud, trazendo o inconsciente das profundezas, emergindo na linguagem.
Antes mesmo de nascer, o corpo começa a ser inscrito pela linguagem. Segundo Harari3, “O corpo do infans só passa a ter existência quando entra em relações familiares com aqueles que vão cuidar dele, dar-lhe um nome, colocar numa genealogia; a mãe passa a cantarolar para ele, a falar.” Para Lacan4, o sujeito é efeito da inscrição do ser de necessidade no campo da linguagem, então, emergindo o sujeito, este ser falante. A relação da criança é com o desejo da mãe, assim, o desejo de desejo5. O campo do grande outro antecipa ao sujeito. Lacan descreve o bebê como um pedaço de carne, a partir de uma relação especular com o outro materno. Com a metáfora do espelho6, a mãe fornece à criança possibilidade de uma rudimentar identificação. O estádio do espelho consiste na passagem que faz da imagem despedaçada do corpo, uma unidade.
Dolto7 elucida ao trazer à tona a importância das identificações para este ser nascente, sendo banhado pela linguagem: “(...) Ele só pode se desenvolver num corpo,
homem ou mulher, se estiver relacionado com uma voz de homem ou de mulher, com uma outra voz associada à de sua mãe. O “outro” nem sempre quer dizer masculino. Refere-se antes a um impacto importante entre ele, sua mãe e uma terceira pessoa.” Esse banho de linguagem, também, pode ser pensado no investimento libidinal materno ao bebê, marcado por Freud em suas produções teóricas, com destaque ao narcisismo primário. Mas aqui destaco uma de suas obras basilares: “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, de 1905.
Freud8 enquanto fazia a descoberta do inconsciente, também se deparava com a sexualidade das histéricas, onde o sexual aparecia deslocado em forma de sintomas no corpo. Através da sua própria investigação, se debruçou nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, com o reconhecimento da sexualidade infantil, que passou a ser entendida como perversa polimorfa. Em seus estudos sobre sexualidade, marca o desvio da finalidade do sexual enquanto reprodução da espécie, para finalidade de prazer. E para isso, evoca as perversões sexuais.
Em relação à disposição bissexual, Freud8 transcorre sobre o hermafroditismo psíquico, advindo do hermafroditismo anatômico, os dois sexos em um mesmo indivíduo, sendo que um ficaria atrofiado. A teoria do hermafroditismo psíquico pressupõe que o objeto sexual do invertido é o oposto do indivíduo normal. Mas Freud não se contentou com tal explicação, pois as situações se mostraram as mais variadas. Por exemplo: um homem invertido pode procurar em outro homem traços femininos. Cabe ressaltar, que Freud9 não coloca os homossexuais separados dos outros seres humanos. Na nota de rodapé acrescentada em 1915 consta: “Ao estudar outras excitações sexuais além das que se exprimem de maneira manifesta, ela constata que todos os seres humanos são capazes de fazer uma escolha de objeto homossexual e que de fato as consumaram no inconsciente.”
No que se refere às fixações de alvos sexuais provisórios, traz que o tocar e olhar podem ser considerados normais desde que o ato sexual seja levado adiante. O prazer de ver torna-se perversão quando se restringe ao genital, se liga à superação do asco, de ver as funções excretórias -o voyeur- ou quando substitui o alvo sexual normal. No exibicionismo, se exibir para poder ver. Aqui Freud10 traz o passivo e ativo, e discorre sobre o sadismo e masoquismo para falar mais à respeito, em que formas ativas e passivas costumam encontrar-se juntas numa mesma pessoa. “O sadismo e o masoquismo ocupam entre as perversões um lugar especial, já que o contraste entre atividade e passividade que jaz em sua base pertence às características universais da vida sexual.”
O caráter perverso da sexualidade proporcionou à psicanálise avançar em sua teoria, como pontuado por Freud11: “Do estudo das perversões resultou-nos a visão de que a pulsão sexual tem de lutar contra certas forças anímicas que funcionam como resistências, destacando-se entra elas com máxima clareza a vergonha e o asco”. Para ele, os sintomas são a atividade sexual dos doentes, percorrendo pela repressão e resistência, nos processos psíquicos. Os sintomas, que conhecemos como uma das formações do inconsciente. Na histeria, assinala uma necessidade sexual desmedida e uma excessiva renúncia ao sexual. A disposição para as perversões é à disposição originária universal da pulsão sexual humana, e com a inibição desenvolve-se o comportamento sexual normal. Assim, o neurótico não atua como o perverso, trazendo a neurose como negativo da perversão. Aqui faço uma observação para que as estruturas clínicas sejam pensadas como constelações clínicas, proposto por Harari, partindo de que não há estrutura clínica pura. Cabe, também, a importância de marcar que o normal e a perversão, aqui, não são homólogos ao saudável e o patológico.
Em minha escuta no SUS, gostaria de trazer um recorte. Trata-se de uma paciente com diagnóstico de HIV. Em época anterior de sua vida, se descrevendo como muito vaidosa, em que cuidadosamente passava um composto de óleos em seu corpo para que só restasse a marca do biquíni, depois de exaustivas horas ao sol. Antes um corpo marcado, agora um corpo desbotado, decretado como aposentado para “atividades sexuais” após o seu diagnóstico de HIV. Era o que ela dizia. Sempre com as mãos trêmulas, apresentando astenia, fraqueza esta que por dias dizia não conseguir levantar da cama. Uma clássica doente dos nervos, que já havia consultado inúmeros psiquiatras, mas nenhum prescreveu um bom remédio. Ao contrário, ela dizia que os remédios receitados lhes faziam mal.
Será que se pode aposentar um corpo das “atividades sexuais”? Pois bem, o sexual dá o seu jeito de aparecer, se trata de um corpo pulsional. A pulsão tem o seu objeto contingencial, pois não se alcança um objeto e sim o contorna. Tudo se organiza em torno da falta, do furo da pulsão, onde Lacan fala do objeto a. Sua satisfação é parcial. Se o inconsciente é “personificado” através da linguagem, o corpo seria a “personificação” das pulsões, desse circuito pulsional que circunda o desejo? Um corpo vivo, mas quem sabe adormecido? Repito, o sexual dá o seu jeito de aparecer. Como na curiosidade da paciente, referida anteriormente, sobre a vida sexual do filho, que na sua opinião não transava mais, pois estava sempre cansado do trabalho, e por isso, a mulher o traíra com outro homem. E, também, quando me perguntou se eu e meu marido fazíamos bebês.
Ainda nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud12 transita sobre a investigação sexual infantil, esclarecendo a pulsão de saber, onde a criança questiona a origem dos bebês e a diferença sexual. A criança formula suas próprias teorias sexuais, a partir da primazia do falo. Freud traz a palavra libido para a pulsão sexual, como analogia à palavra fome, do impulso de nutrição. O chuchar, sugar com deleite, é trazido por ele como uma manifestação importante da sexualidade infantil, o autoerotismo, indo além do propósito de nutrição. Trata-se de um prazer anteriormente vivenciado e que é relembrado.
A primeira e mais vital das atividades da criança – mamar no seio materno (ou em seus substitutos) - há de tê-la familiarizado com esse prazer. [...] A princípio, a satisfação da zona erógena deve ter-se associado com a necessidade de alimento. A atividade sexual apoia-se primeiramente numa das funções que servem à preservação da vida, e só depois torna-se independente delas. [...]. (FREUD, 1996, p.171).
E a amamentação, segundo Freud13, torna-se modelar para todos os relacionamentos amorosos, onde o encontro do objeto é, na verdade um reencontro.
Sobre a pulsão, Freud8 a diferencia do estímulo. E traz as zonas erógenas para explicar esse circuito pulsional que vai além dos genitais. Em sua natureza, a pulsão não possui qualidade, sendo considerada uma medida de exigência de trabalho feita à vida anímica. Difere-se do estímulo por este ser produzido por excitações isoladas vindas de fora. A pulsão faz diferenciar os seres falantes dos outros animais, que obedecem a uma lógica do instinto. Portanto, para os outros animais existe a relação sexual. Lacan14 traz o seu aforismo: “Não existe relação sexual”: “Quando digo que não há relação sexual, formulo, muito precisamente, esta verdade: que o sexo não define relação alguma no ser falante.” Não há relação sexual porque um não complementa o outro, sendo esta uma fantasia. Harari15 traz a seguinte indagação: “O que se supõe obter na assim chamada relação sexual, em termos imaginários do cotidiano?”. E ele mesmo reponde: “Supõe-se que dois fazem um!”
A psicanálise trabalha com o singular. O singular do desejo do sujeito. Um sujeito do inconsciente. Um inconsciente estruturado como uma linguagem, marcado pela falta. Portanto, um real do corpo que é singular. O corpo porta uma linguagem. Toda linguagem está dirigida ao falo que é um significante que inscreve algo no corpo: presença e ausência. É o falo o organizador da sexualidade e as diferenças anatômicas produzem efeito de linguagem no psiquismo. Harari3 traz o complexo de castração como nódulo das
neuroses e remete à Freud, que colocou que não se trata de um corte do pênis e sim dos limites do corpo, limites sociais, limites do convívio, limites colocados pelo dinheiro; todos os limites que provocam a dor de existir e, em análise como o sujeito suporta a castração.
Com todo exposto, existe constituição do sujeito sem a sexualidade? Freud traz à tona a sexualidade perversa polimorfa como crucial aos processos inconscientes, através de um corpo pulsional. O percurso dos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, permite avançarmos sobre o tema “O corpo na psicanálise” e seus deslizamentos, com toda a potência revolucionária que a psicanálise avança se tratando de sexualidades. Pode-se crescer, envelhecer, mas ainda sim a sexualidade sempre será marcada pelo infantil, sendo este norteador da clínica psicanalítica. E sim, continuamos com as questões, pois em psicanálise não se trata das respostas e sim das perguntas, daquilo que não se sabe. E Lacan se serviu disso ao se fazer freudiano.
Referências
1 FARIA, Michele Roman. Constituição do sujeito e estrutura familiar: o complexo de Édipo, Freud a Lacan. 3ª ed. 3ª reed. Taubaté: Cabral, 2021. p.8-9.
2 LACAN, Jacques. A ciência e a Verdade. In: Escritos. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 882.
3 HARARI, Roberto. As neuroses são atuais? In: REMOR, Carlos Augusto; LIED, Inezinha Brandão; MACARELLO, Tânia Vanessa Nothen (orgs.). O psicanalista, o que é isso? Rio de Janeiro: Cia. De Freud, 2008. p. 196-197.
4 LACAN, Jacques. Os três tempos do Édipo. In: O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. p. 185-203.
5 LACAN, Jacques. Os três tempos do Édipo (II). In: O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. p. 205.
6 LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 96-103.
7 DOLTO, Françoise. Tudo é Linguagem. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2018. p. 20.
8 Freud, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: I As aberrações sexuais. In: Um caso de histeria, Três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1996. Volume VII. p. 128-162.
9 Freud, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: I As aberrações sexuais. In: Um caso de histeria, Três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1996. Volume VII. p. 137.
10 Freud, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: I As aberrações sexuais. In: Um caso de histeria, Três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1996. Volume VII. p. 150.
11 Freud, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: I As aberrações sexuais. In: Um caso de histeria, Três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1996. Volume VII. p. 153.
12 Freud, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: II A sexualidade infantil. In: Um caso de histeria, Três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1996. Volume VII. p. 171.
13 Freud, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: II A sexualidade infantil. In: Um caso de histeria, Três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1996. Volume VII. p. 210.
14 LACAN, Jacques. A pequena diferença. In: O seminário, livro 19: ...ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 13.
15 HARARI, Roberto. Por que não há relação sexual? REMOR, Carlos Augusto; LIED, Inezinha Brandão; MACARELLO, Tânia Vanessa Nothen (orgs.). Por que não há relação sexual? Rio de Janeiro: Cia. De Freud, 2006. p. 16.
* Texto produzido para a VII Jornada Tubaronense de Psicanálise, 2022.
** Psicanalista em formação. Membro da Associação Movimento Psicanalítico Sul Catarinense. Participante da Maiêutica Florianópolis Instituição Psicanalítica. e-mail: luanabranco.psi@gmail.com
Quero, através de um poema, poder transmitir
Que o sintoma social não faz mal
É a única possibilidade do sujeito poder repetir
Repetir o que não foi elaborado
É uma maneira de dizer ao analista o que não foi simbolizado
O sujeito neurótico, em seu mundo caótico, busca igualar o analista a alguém
Fala com o corpo enunciando sua dor à espera de um simbólico
Enquanto este não chega é dessa maneira que ele se mantém
A angústia toma conta e as interrogações aparecem
É dessa maneira que o sujeito se esquece
Freud menciona o sentimento oceânico em “O mal estar na civilização''
Este é um sintoma que se repete em massa e clama por uma interdição
Interdição implica uma falta para haver o desejo
Mas a ferida narcísica do sujeito fala mais alto
E aí, vem o manejo
O manejo clínico que impera na análise é em torno da castração imaginária
Se o sujeito não se identifica, há uma falha na simbolização edípica
Isso está em Freud
E Lacan contribuiu com uma certa generosidade
A psicanálise busca, sem julgamentos, compreender o sujeito
Não é por mal
Não se trata de uma causa social
O gozo fálico é um excesso que o sujeito nos apresenta como uma falta subjetiva
A leitura desse sintoma deve ser entendida de uma forma construtiva
Atualmente alguns sujeitos apresentam dificuldades em se relacionar e se identificar com o objeto
Por que não, então, fazer da castração o lugar de resto ou adjeto?
Mostrar ao sujeito que a falta é algo positivo é um grande desafio a nós
Mas quem disse que seria fácil desatar nós?
O nó górdio ligado ao simbólico que amarra o real ao imaginário
Clama para ser desatado e formar laço.
O sintoma em forma de nó é um enigma construído
Justamente para ser destituído
A angústia implica um sintoma para esconder a dor
Pois o sintoma é a última barreira frente ao horror.
O gozo real manifesto é um excesso aos extremos
Citarei alguns exemplos...
Sujeitos que acumulam objetos variados sem entender o real significado
Preenchem seu vazio calado
Comer, compulsivamente, para se satisfazer, temporariamente, não é o suficiente
É uma saída apaziguante para não lidar com situações angustiantes
A relação com um parceiro não basta
Pois, quando este não estiver,
Quem cessará essa falta que castra?
A falta revestida de excesso é atenuante
Evita o desamparo e momentos angustiantes
O contrário também pode acontecer
O sujeito pode optar em não se envolver
A relação com o outro é desafiadora e castradora
Imagine! Abrir mão das minhas regalias
Exemplos acima citados não estão aí para serem julgados
E sim questionados como sintomas sociais individuais
Atravessam os sujeitos convidando-os a uma implicação
Com a sua castração.
Freud está morto e ultrapassado
Diria que há algo equivocado
Suas ideias continuam presentes
Eis a histeria da linguagem latente
A conversão histérica atual assumiu uma nova roupagem
Na linguagem
O discurso do cancelamento diz respeito ao apagamento
Justamente do que é diferente
A dificuldade atual de lidar com a diferença sexual
É uma forma de interpretar o sintoma histérico
Pois o discurso da não diferença menciona que tudo é genérico
A humanidade e seus processos regressivos!
Nisso ela insiste.
A condição adulta está fora de moda
Tem até nome, "a geração cringe''.
Os significantes surgirão sucessivamente
Passará anos e até séculos
E o sujeito é implicado a lidar com seus afetos
O gozo denúncia-se em falta
O sujeito busca tampona-las continuamente
Eis aí o funcionamento inconsciente
O gozo sintomático que circula o contemporâneo é atualizado
A psicanálise é capaz de entender o recado
São construções em andamento que merecem uma compreensão. Jamais exclusão!
É preciso ouvir onde o sujeito deve advir
Agora... Pôr o sujeito no lugar de um dever
É atender a demanda com a qual este já está acostumado
Pois aí ele não será implicado
Talvez apagado
Apagado na igualdade da qual a psicanálise não faz parte
Pois se a psicanálise é política, é no sentido em que ela se implica
A política da psicanálise é a ética do sujeito e do analista
Insistir para este não desejar é anular as saídas subjetivas apontadas pela teoria psicanalítica
E isso Freud explica desde a fase edípica
Trata-se de perdas às quais o sujeito paga com a fala se deparando com seu desejo
E o analista paga com o seu ser… realizado
Por deixar o sujeito implicado
A implicação de que se trata é do compromisso com o sujeito
Pois se trata da ética da psicanálise versus a ética do desejo.
Em A Coisa Freudiana, Lacan estabelece uma dit-mension da verdade, articulando-a com a fala. A psicanálise possibilita reintroduzir no cerne do discurso humano a dimensão da verdade como não-toda a partir da fala, e a dimensão do saber naquilo que se articula ao sujeito barrado, para sustentar a insistência na construção de um lugar de enunciação possível para os sujeitos que buscam uma análise. Na sustentação da Psicanálise não é diferente, uma vez que qualquer dispositivo, para que seja nomeado psicanalítico, deve operar sem a mediação de um saber prévio e situar-se em posição de se arranjar a partir de um furo no saber. Isso implica na sustentação do real da experiência analítica, e, consequentemente, de um manejo do desamparo. No ano que o mundo parou, fomos convocados a sustentar virtualmente um espaço que possibilita circular significantes que vão na contramão do discurso hegemônico da nossa contemporaneidade, que se caracteriza por não haver lugar para o sujeito barrado. A transmissão, por outro lado, articula o saber com o não-saber inerente à experiência psicanalítica. O saber vinculado à transmissão, portanto, está ligado ao furo na cadeia do significante, ao impossível de ser dito, ao Real da experiência analítica. Esse saber será acessado por cada analista em formação de uma maneira singular, assim como a experiência do leitor com o texto psicanalítico, principalmente o lacaniano. Portanto, não importa por qual veículo, um estilo é a única formação que podemos pretender transmitir. Exatamente pelo efeito de desamparo que a desidentificação - efeito de fim de análise – produz, podemos afirmar que, no que diz respeito ao transmissível do estilo, trata-se do objeto a. O estilo, portanto, é o objeto a, objeto causa do desejo. A isso o analista deve ser fiel, esteja ele inserido na escola ou conduzindo uma análise: sempre ocupado com a transmissão dessa peste chamada desejo.
Fernanda Samico. Psicanalista. Diretora do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise - núcleo Vassouras. Doutora e Mestre em Psicanálise – Clínica e Pesquisa/UERJ. Graduada em Psicologia/UFJF. Professora Adjunta no curso de Psicologia e da Universidade de Vassouras. Coordenadora do Serviço Escola de Psicologia na Universidade de Vassouras.
20 de junho de 2020.
O cinema é a arte que nos convoca a buscar representação onde não há. Ocupa um lugar essencial em nossos cotidianos, já que na impossibilidade de representar, o encontro se dá com este estranho familiar que nos habita, completo de furos e vazios. O filme “Quero ser John Malkovich” provoca esta vivência, uma vez que relata o âmago do existir: a insatisfação de ser quem se é. Mas, quem de fato se é?
Freud, em seu texto “O mal estar na civilização”, diz sobre a aparência enganosa da segurança que sentimos de nós mesmos, de nosso Eu, saber este investigado pela pesquisa analítica, a qual demonstra sermos seres sem fronteira nítida, ávidos de pulsões. Acrescenta que para que se reconheça o Eu, é necessário sentir dor e desprazer. No entanto, o princípio do prazer busca eliminar e evitar tais sensações. É neste conflito entre pulsões, que o Eu vai se diferenciando dos objetos do mundo externo. Contudo, essa fronteira ameaça desaparecer com a iminência do amor (FREUD,1930).
Segundo Freud, é pela experiência do amor sexual que apreciamos as mais fortes vivências de satisfação. Continuamos na busca por essa satisfação, colocando esta experiência no centro da vida, porque afinal, estamos sempre em procura do nosso Eu-de-Prazer. No entanto, tal atitude torna-se perigosa, uma vez que o indivíduo se torna dependente de uma parte do mundo externo, ou seja, do seu objeto amoroso escolhido. Uma vez dependente, o amante fica a mercê do sofrimento máximo quando o amado o abandona. Tal qual esta vivência, reatualizamos no amor e no sofrimento nosso amor primevo, o qual renunciamos na tentativa de preservar nosso Eu. Portanto, amar é estar nu, corpórea e além de, desprotegidos ante o sofrimento e a infelicidade que cerca este sentir ambíguo. Ainda assim, continuamos amando, necessitamos amar, por quê?
É sabido que do amor nada sabemos além daquilo que vivenciamos. Intensidade, alguns resumem, mas, de fato, ambiguidade é o que sentimos. Quando amamos desejamos ter aquela pessoa “para sempre” sob nossas asas, para cuidá-la e assisti-la. Queremos ser a pessoa amada com todo o amor que ela recebe de nós. É na impossibilidade de nos amarmos que amamos o outro. Por fim (ou início?): ódio. De tanto amar sem medidas na mesma medida, torna-se insuportável amar.
Ana Suy nos transmite a fala que diz: “para amar, assim como para desejar, é necessário que haja o reconhecimento de uma falta.” (KUSS, 2015) Assim, amar e desejar implicam renúncia. Renúncia desse amor absoluto e completo do Eu narcísico, assim como, renúncia do primeiro amor. É dessa perda e dor que amamos na tentativa de eliminar. Desejamos reencontrar a completude, e só este outro é capaz de ofertá-la. Queremos tê-lo só para nós porque queremos introjeta-lo e depois aniquilá-lo. Porque para amar, é preciso odiar. Para amar é preciso sofrer. É preciso renunciar. O amor nos civiliza ao passo que é impossibilitado, barrado, limitado. Disso, vem o mal estar do amar: a impossibilidade de completude diante do vazio que estrutura o sujeito.
Retomo: o amor, tal qual o cinema, é a arte que nos convoca a buscar representação onde não há. Ocupa um lugar essencial em nossos cotidianos, já que na impossibilidade de representar, o encontro se dá com este estranho familiar que nos habita, completo de furos e vazios. O filme “Quero ser John Malkovich” provoca esta vivência, uma vez que relata o âmago do existir: a insatisfação de amar e não ser amado. Craig e Lotte não queriam de fato ser John Malkovich. Queriam o que ser John Malkovich possibilitava: ser amado por Maxxine. Dos mal estares que vivenciamos, talvez o mal estar no amor seja o mais cruel, desde o princípio, pois, é o amor que anuncia a falta. É pelo amor que renunciamos uma parte de nosso narcisismo; É pelo amor que demandamos e desejamos. O amor é a representação do vazio que nos estrutura. Sem ele, o que há de civilização?
REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
KUSS, Ana Suy Sesarino. Amor, desejo e psicanálise. Curitiba: Juruá, 2015
¹Trabalho apresentado no evento: O Mal-Estar na Vida e na Arte: Um Enlace com o Cinema – Discussão sobre o filme: “Quero ser John Malkovich”.
²Tamiris Cardoso Costa. Acadêmica da 5 Fase do Curso de Psicologia da Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL e associada AMPSC. Instagram: @strmcst
20 de junho de 2020.
Após terminar o filme Quero ser John Malkovich [1] alguns questionamentos acerca das produções artísticas vieram à tona: Será que damos o maior peso à arte pela arte ou o status do artista que a fez? Por que as marionetes não são olhadas pelas pessoas de uma rua movimentada nas mãos de Craig e nas mãos de Malkovich lágrimas escorreram em um teatro lotado? Por que o que eu faço todos os dias comumente resulta em benefícios triviais e tal feito por celebridades recebem grande relevância? Estendo: por que para algumas pessoas a vida pode estar sendo uma experiência de frustrações e injustiças e para outras a mais graciosa dádiva? Certamente não vou responder essas perguntas, mas pensar as questões a luz da psicanálise. Todas estas dualidades tem em comum o sujeito do inconsciente, esse que sofre do mal-estar do processo civilizatório.
Parafraseando Freud na sua obra Mal Estar Na Civilização [2] a vida é muito difícil, traz dores, decepções e para suportar esse sofrimento, existem recursos que nos permitem aliviar um pouco: “poderosas diversões, gratificações substitutivas e substâncias inebriantes” [2, p. 18]. No filme, temos a gratificação substitutiva através da substituição da realidade por arte, Craig tem as marionetes. Ele diz para Maxine sobre o porquê gostar de Marionetes: “Maxine, não tenho certeza, talvez seja a ideia de ser outra pessoa por um instante. Estar em outra pele, pensar e mover-se diferentemente, sentir de outra maneira”. Do outro lado tem Malkovich, uma celebridade, reconhecido por onde vai, invadido de inúmeras vias e que também tem seu sofrimento e sua forma de alivia-lo através das substâncias inebriantes “que influem sobre nosso corpo, mudam a sua química [2, p. 18].”
O que eles tem em comum? Por que todos nós estamos insatisfeitos? O que tem de Malkovich em Craig? O que tem de Craig em Malkovich? O que deles em todos nós? Estão a procura d(a)procura felicidade [3], esse que também é um filme, ficção que está em nossas fantasias de alcançar a felicidade completa. Freud [2] relata que essa busca tem duas vias: a ausência do desprazer e dor ou vivência forte dos prazeres. O que chamamos de felicidade está inserido implicitamente no programa do princípio de prazer, limitando as possibilidades e reduzindo a “satisfações repentinas, de necessidades altamente represadas, o que faz com que ela seja de caráter eventual, um morno bem-estar” [2, p. 20]. No entanto, a infelicidade nos visita com muito mais frequência e a partir de três fontes: “o próprio corpo, com sua finitude, por exemplo, como foi nos mostrado no filme em relação a não aceitação da morte ao ponto de invadir outros corpos, o mundo exterior, do qual não temos o controle; e o relacionamento com outros seres humanos” [2, p. 20]. Diante disso, é impossível alcançar essa felicidade completa, seja porque reduzem reivindicações de felicidade, ou, porque as infelicidades nos alcançam mais rapidamente. Freud ressalta: “A liberdade individual não é um bem cultural” [2, p. 41], isto é, implica em renúncias, restrições e perdas.
Freud percebeu ao decorrer dos seus trabalhos que ao optamos por viver na sociedade, em civilizações, consequentemente somos atingidos pelo mal-estar o tempo todo. Esses sacrifícios são necessários para as regulações da vida em sociedade e o sujeito posterga sua satisfação para ser aceito nas civilizações presentes nunca conseguirá alcançar a felicidade. A frase que Craig ao falar com o macaco sobre a consciência faz sentido, assim como a vida, ele diz: "Você não sabe a sorte que tem de ser um macaco. Pois, consciência é uma maldição terrível. Eu penso, eu sinto, eu sofro.”
REFERÊNCIAS
[1] S. Jonze, Diretor, Being John Malkovich. [Filme]. 1999.
[2] S. Freud, O Mal-Estar Na Civilização, São Paulo: Penguin E Companhia Das Letras, 1930/2016.
[3] G. Muccino, Diretor, The Pursuit of Happyness. [Filme]. 2006.
¹Trabalho apresentado no evento: O Mal-Estar na Vida e na Arte: Um Enlace com o Cinema – Discussão sobre o filme: “Quero ser John Malkovich”.
²Nathalia do Nascimento Clemencia. Psicóloga (CRP12/18036). Participante Associada AMPSC. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7820206916303357 / Instagram: @nathclemencia
20 de junho de 2020.
A pergunta vem logo ao deparar-se com o próprio título do longa, "Quero ser John Malkovich". O que teria Malkovich para ser tão requisitado? Quem é John Malkovich? Vamos deixar a pergunta inicial para além e partiremos tentando responder a essas duas seguintes. O primeiro momento em que John Malkovich aparece no filme, é por dentro de seus próprios olhos, lê seu jornal, come seu café da manhã, pega um taxi com a ajuda do porteiro de seu prédio. Então o motorista olha pelo retrovisor, com o carro já em movimento, e pergunta: "O senhor não é aquele ator famoso? John..." e o próprio completa o sobrenome. Volta para o motorista e ele concorda com o nome, mas a seguir já diz: "Adorei aquele seu filme em que o senhor é um ladrão de joias". Mas Malkovich diz que nunca fez esse filme, porém, mesmo assim, o motorista diz que ele fez. Então, quem é John Malkovich?
Mesma pergunta aparece quando Craig Schwartz, o protagonista, vai contar a novidade de poder entrar no corpo de John para sua colega de trabalho, Maxine. E ela lhe faz a mês pergunta que fora feita pelo motorista, de quem seria este sujeito, e Craig, assim como aquele motorista do taxi, responde: "O cara que fez aquele filme em que era um ladrão de joias".
Então este é John Malkovich, um ator "famoso", mas que ninguém o conhece pelo o que faz, mas pelo filme que todos acham que ele fez, porém não era ele.
Por que então querer ser John Malkovich? O que ele tem a oferecer? No filme, ele é essa possibilidade de ser outra pessoa, fazer aquilo que sempre sonhou, mas que na própria pele não é possível ter o reconhecimento necessário, também aquela pessoa que lhe proporciona uma vida de luxo, ou ainda, a possibilidade da vida eterna.
Com as duas perguntas respondidas, pelo menos é isso que o filme traz de uma maneira mais clara, voltamos àquela primeira: Por que quero ser John Malkovich? Para isso, analisar pela perspectiva do protagonista, Craig Schwartz, seja o que move a escrita até aqui.
Recorrer ao texto “O mal-estar na civilização” de Sigmund Freud (1930) se faz necessário, e logo em suas linhas iniciais, Freud aborda o Eu e sua relação com o mundo exterior e o outro, onde o Eu busca sua satisfação e prazer.
“Normalmente nada nos é mais seguro do que o sentimento de nós mesmos, de nosso Eu. Este Eu nos aparece como autônomo, unitário, vem demarcado de tudo o mais. Que esta aparência é enganosa, que o Eu na verdade se prolonga para dentro, sem fronteira nítida, numa entidade psíquica inconsciente a que denominamos Id, à qual ele serve como uma espécie de fachada [...]. Mas ao menos para fora o Eu parece manter limites claros e precisos.” (FREUD, 1930, p. 16)
Com isso, Freud apresenta o Eu e sua relação direta com o Isso (Id) e com o Supereu, que aqui ainda não o nomeia, mas faz ao longo do texto. É desta forma que segue a análise do filme, já que Craig Schwartz, ao querer ser John Malkovich, quer uma busca pelo prazer. O mundo de Craig o coloca em um lugar quase que de “resto”, em que seu desejo é “esmurrado” pelas esquinas da cidade, é marginalizado. O mundo externo o coloca limites todo o tempo, sendo de certo modo suas próprias marionetes, preso a fios e seguindo os comandos daquele que tem sua vida nas mãos. Craig é um homem que parece ter o peso do mundo em cima de si, anda com sua coluna curvada, e quando arranja um emprego, tem as barreiras das paredes, chão e teto o esmagando ali também, fazendo de sua coluna curva quase uma adaptação pré-datada.
Craig, então, encontra em John Malkovich uma saída para seu Eu aprisionado, mas apresentando uma “bela” repetição, permanece aprisionado. Porém agora a um corpo em que ele controla, um corpo com certo sucesso e beleza, suficiente para ter a mulher e a fama com suas marionetes, assim como desejara.
Quando Craig ainda disputa com John o controle do corpo, Freud (1930, p. 16-17) traz no mesmo texto que “No auge do enamoramento, a fronteira entre Eu e objeto ameaça desaparecer. Contrariando o testemunho dos sentidos, o enamorado afirma que Eu e Tu são um, e está preparado para agir como se assim fosse.”. Como se neste momento, em que Craig e John fazem as pazes, o Eu e Tu se unem. Este Tu, com T maiúscula dá a impressão de não ser um simples outro, mas aquele Outro maiúsculo também, ou pelo menos de algum modo. Pois John Malkovich pode ser interpretado como alguém do inalcançável, que determina o que pode e não pode, onde o Supereu não age, já que a fama e o dinheiro o permitem fazer tudo, promovendo assim o puro prazer. Mas isso caí por terra, pois essa união não é toda possível, sempre falta algo, então este Tu age novamente.
Deste modo, o filme apresenta a caricatura do sujeito neurótico em sua busca pelo prazer, mas aquilo que o tornou neurótico e a cultura estão aí para lhe barrar, lhe mostrar o que está dentro e fora, como Freud também traz que:
“Um outro incentivo para que o Eu se desprenda da massa de sensações, para que reconheça um “fora”, um mundo exterior, é dado pelas frequentes, variadas, inevitáveis sensações de dor e desprazer que, em sua ilimitada vigência, o princípio do prazer busca eliminar e evitar. Surge a tendência a isolar do Eu tudo o que pode se tornar fonte de tal desprazer, a jogar isso para fora, formando um puro Eu-de-prazer, ao qual se opõe um desconhecido, ameaçador “fora”.” (FREUD, 1930, p.18)
Então, por que quero ser John Malkovich, se no final de tudo percebe-se que não é possível obter a satisfação total, a felicidade absoluta, e que os contos de fadas só acontecem nos contos. Isso pode parecer cruel em algum momento, mas o que seria da felicidade se fosse apenas ela, será que ainda assim seria felicidade? Ou será que a felicidade se torna possível a partir de suas barreiras e de seus fios condutores?
Referências:
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). In.: Obras Completas. Companhia das Letras. São Paulo. 2010.
QUERO ser John Malkovich. Direção de Spike Jonze. Estados Unidos. Distribuição: Universal Pictures do Brasil, 1999. Digital (113 min.).
¹Trabalho apresentado no evento: O Mal-Estar na Vida e na Arte: Um Enlace com o Cinema – Discussão sobre o filme: “Quero ser John Malkovich”.
²Jamerson Luiz Schwengber Dornelles. Psicólogo (CRP 12/16206) e Psicanalista. Membro e atual Presidente (2020-2021) da Associação Movimento Psicanalítico Sul Catarinense. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5387636764089596 . Instagram: @psi_jamerson
20 de junho de 2020.
O cinema enquanto manifestação artística é um dos artifícios da cultura através do qual podemos simbolizar o mundo, suportá-lo, e com seu conteúdo, quem sabe, produzir a posteori. Em “Quero ser John Malkovich” [1] observamos uma obra atemporal que nos convoca a pensar o Mal-Estar de uma coletividade que encontra como meta ocupar o corpo de um outro.
Assim como em uma Psicanálise o início denuncia seu desenrolar, as primeiras cenas apresentam um casal que está às voltas com suas insatisfações cotidianas. Ele, Craig, que tem por oficio manipular marionetes, queixa-se de não poder obter subsistência de sua prática. Ela, Lotte, rodeada por inúmeros animais para com os quais se relaciona como se fossem crianças, interroga-o sobre quando será possível terem um filho. Encontros com a castração.
O mal-estar é civilizatório, Freud [2] toma como questão primordial do sujeito humano o sentido da existência e a busca pela satisfação nela, a denomina como felicidade em seu texto, conquista-la e mantê-la, seja pela ausência de desprazer ou pela vivencia dos mais intensos prazeres, seria o que nos impulsiona, isso sem desconsiderar a agressividade original que nos põem a prova nas relações em sociedade.
A cultura se fundaria a partir de um crime, uma transgressão. No filme nos deparamos com a ânsia de um sem limites para o gozo. Lançar mão de ocupar o corpo de alguém como um recipiente seja para viver sua profissão com glória, estar um relacionamento com a mulher desejada (que não é a sua), ou a fim de prolongar sua existência, é sem dúvida não medir esforços para atingir a meta.
Quando o primeiro “cliente” para John Malkovich chega e questiona se ele poderia ser quem quisesse, uma barreira se coloca: Você pode ocupar o corpo de outro, mas... Questão que se impõe com a saída de que esse outro seria apenas um, Malkovich por ora. Sem problemas, essa era sua segunda opção.
Outro limite que se impõe é o tempo em ocupa-lo de 15 minutos, minutos estes que não bastam para o grupo de idosos que organizam sua incursão definitiva ao corpo de John a fim de encontrar uma vida eterna, o enfrentamento da certeza da morte como anunciou Freud nos assola e tem em si a presença última da castração como demarcadora da falta que nos constitui tão primitivamente.
O que acontece quando um homem atravessa seu próprio “portal”? Malkovich que, sem ser considerado enquanto sujeito desejante, em dado momento adentra a si mesmo assombra-se com o que encontra. Enquanto todos almejam repetir a pequena dose, John percebe o horror. Momento que demarca a existência de um tempo singular para quaisquer elaborações, tempo que não lhe foi possibilitado quando lançado a vislumbrar seu interior a própria sorte, sendo fadado a servir como recipiente pelo que lhe restar de vida.
Retornando no fim, o início: O filme termina com Craig ocupando um corpo outro, o qual se subtende não poderá mais controlar como a Malkovich, torna-se espectador da vida de outrem e não mais titeireiro; e Lotte, por outro lado, encontra uma parceria em Maxine, que lhe ofereceu o filho que Craig negava. Cada qual esbarrando nas saídas que foram possíveis enquanto seres marcados pela falta.
“Atualmente os seres humanos atingiram um tal controle das forças da natureza, que não lhes é difícil recorrerem a elas para se exterminarem até o último homem. Eles sabem disso; daí, em boa parte, o seu atual desassossego, sua infelicidade, seu medo. Cabe agora esperar que a outra das duas “potencias celestiais”, o eterno Eros, empreenda um esforço igualmente imortal. Mas quem pode prever o sucesso e o desenlace?” (FREUD, 1930)
Referências
[1] S. Jonze, Diretor, Being John Malkovich. [Filme]. 1999.
[2] S. Freud, O Mal-Estar Na Civilização in: Obras Completas, v. XVIII. São Paulo: Companhia Das Letras, 1930/2010.
¹Trabalho apresentado no evento: O Mal-Estar na Vida e na Arte: Um Enlace com o Cinema – Discussão sobre o filme: “Quero ser John Malkovich”.
²Larissa Alano Mendes. Psicóloga (CRP 12/19140). Associada AMPSC. Lattes http://lattes.cnpq.br/1191208557251052 . Instagram: @larissamendespsi
20 de junho de 2020.
Há no sujeito, presente em todo o filme, o explicito desejo de não vestir a carcaça que lhe foi concedida ao nascimento, e sim uma outra, a de uma possibilitada por um acaso, de uma celebridade.
Em Lacan temos a constituição do corpo que habito pela discurso. Um corpo habitado pela dimensão do ser. Ser antecedente ao ter. O ser se constitui a partir do ato de falar. A comunicação nos faz poder sermos sujeito.
Vamos tomando para nós do externo, o outro, o que nos é corpo, forma. Um nariz, uma boca, olhos… “É a cara do pai”, “Tens os olhos da mãe”. Em Meio estes vários discursos, não só com uso de falas, mas de comunicação de qualquer forma, subjetiva por exemplo, compomos nossa identidade com estes diversos fragmentos, introjetando-os. Mecanismo importantíssimo esse, um dos compositores do Sujeito. Somos feitos do outro, como olhando para um espelho, bebemos de um formato. A partir da inserção no social, vamos lidando com o real e se deparando com a castração.
Temos castração como um barramento para satisfazer-se. Há uma parede que me impede de prosseguir e alcaçar aquele estrondo nervoso que me desloca, leva-me as nuvens e então, me põe ao chão e despido para o real. Prazer-desprazer.
Uma cena em que um homem obeso procura a dupla principal do filme, Maxine e Craig, buscando uma forma de não ser o que é: um obeso. Como o mesmo diz, um gordo, triste e gordo. Este personagem se reduz a sua característica, e deixa claro um sofrimento. Sua aparência não lhe cabe, não lhe possibilita gozar. Ser John Malcovich é uma chance dessa satisfação vir ao a luz. Essa possibilidade de não ser castrado, impedido pelo real, social, de obter prazer.
O social nos compõe, e compõe seus conceitos e padrões de estética. A partir destas composições, o Eu inserido nesse social por sí só castrante, introjeta estas características “desejáveis” pelos outros e, busca não ser excluido, não ser impossibilitado de desejar. Este ato de introjetar é similar ao ato de atirar contra sí, assim como há similaridade a procedimento de mudança por metodos médicos de estética. Há uma tentativa de obter uma sequela desse disparo. De agredir seu Eu real, sofrendo, mutando-o.
Temos introjeção como uma expansão do Eu, adesivo a características outrora de outro e um assimilar destas para consigo. Ocorrem alterações no Eu por conta dessa expansão que visa, por identificação, buscar mais componentes. Há ânsia de um mais de gozar.
O senso comum, termo da filosofia, da-se como uma espécie de ideias partilhadas entre muitos sujeitos, em nossa sociedade que apresenta-se atualmente mais maquinaria, menos humana, sujeitando-se a quase ausentar a subjetividade do sujeito. Talvez seja essa a busca? Estas ideias partilhadas auxiliam a compor padrões dos mais variados, arquitetando uma cadeia detalhes a opiniões, a certos e errados, feios e belos. Temos então uma composição do que é belo, do que é aceitável. Talvez do que é passível de obter prazer, ser aceito, não ser excluso. O que pode ser da tristeza se não desejado, sem vida, não amado, excluso?
Por fim, há uma lamentação do personagem que apresenta um sofrimento. Uma necessidade de ser ouvido, de ser desejado torna-se exposta. Ato de escuta esse essencial para o alivio tensional ocasionado pelo sofrimento. O processo analítico busca através da fala e da escuta atribuir sentido para ser.
Somos marionetes do nosso inconsciente. Podemos por meio da psicanalise enxergar as cordas e comandar nossos movimentos.
¹Trabalho apresentado no evento: O Mal-Estar na Vida e na Arte: Um Enlace com o Cinema – Discussão sobre o filme: “Quero ser John Malkovich”.
²Lucas Candido Rech. Fotografo e estudante de Fisioterapia UNISUL/Tubarão. Associado AMPSC.
20 de junho de 2020.
Quinze minutos, é o tempo que temos. Pelo menos para Craig e as demais pessoas que ansiavam ocupar o corpo e o lugar de outra pessoa no filme “Quero ser John Malkovich”. Corpo este que traz a possibilidade de realizar desejos e fantasias inscritas em cada sujeito. Se trata aí, de um corpo jovem, de bela aparência, com boa mobilidade física, visto e reconhecido pela fama e pelo dinheiro. O lugar do outro, que para muitos talvez seja um bom lugar para se querer ter e viver. Será quanto tempo mais ainda temos?
O tempo do envelhecer, este tempo que assim como as fases anteriores a esta, compõe a vida, mas que, comparado a elas seja a menos falada e vista. E que quando encarado de frente parece, para muitos causar um horror sem nome.
O que significa envelhecer? Talvez para cada um, isso esteja representado de uma forma, inscrito e formado pelas próprias experiências da vida. A velhice mostra para cada pessoa as marcas que o tempo produz sobre si: a debilidade do corpo, a incapacidade muitas vezes denunciada pelo outro, a desvalorização, as limitações físicas e psíquicas, e até a aproximação com a morte. Pode não ser fácil encarar o fato de deixar de ser protagonista da sua própria história. Na falta de vida, há o anseio por sentir-se vivo, viver e querer mais vida, mais tempo, quanto mais envelhecemos mais sedentos por vida estamos. Freud ao escrever sobre a Psicanálise, discorreu muito pouco sobre a velhice, mas nos alertou para um certo cuidado à essas pessoas com mais idade, não poderiam fazer tanto proveito da análise, logo que, sua elasticidade mental pudesse estar comprometida. O que não tornou em sua teoria uma ideia definitiva. Pois sabemos que se há uma via em que possibilite o sujeito de se manifestar, ali há a possibilidade de psicanalisar. Dessa forma, podemos perceber um certo conflito entre mente e corpo do qual a fragilidade do biológico é demarcada pela experiência psíquica, que é constituída pelas experiências infantis, as pulsões, os conflitos, os fantasmas, todos os processos constituintes do sujeito que perduram por toda a vida. Em seu artigo sobre o “O Inconsciente”, Freud nos coloca a possibilidade de acessar tais processos inconscientes, por meio da comunicação, linguagem e demais vias, que nos falam de um outro tempo, que não o tempo cronológico, e sim de um tempo que não se pode contar, que não envelhece como o que acontece com o corpo físico.
Então como se deparar com a angústia da finitude, estando cada vez mais sedento por vida? Para o inconsciente não há um tempo cronológico, e isso talvez seja um ponto de conflito, há um corpo que não vive eternamente, me parece aqui que só eterno mesmo poderia ser a mente. E mesmo assim, no encontro com a morte, nada permanece. As pessoas querem estar na pele das outras, porque a pele do outro parece ser mais jovem e agradável, passível de lhe dar mais um tempo. É difícil se deparar com a sua própria pele e no que ela está se transformando. Porque velho é só o outro, até que se possa ver-se a si mesmo na frente do espelho.
No filme, as questões levantadas até aqui, aparecem nos momentos em que o senhor Lester conversa com Craig sobre suas vontades por possuir uma mulher, até então sua secretária, e lhe conta sobre seus mais profundos desejos para com ela. Craig mostra-se não interessado em querer ouvir sobre aquilo e não dá importância ao homem velho, talvez porque não se possa conversar sobre essas coisas com uma pessoa mais velha ou porque os velhos já não possuem mais tanta capacidade e energia para se envolverem amorosa e sexualmente. Já não possuem mais disposição no corpo para isso, a aparência já não cumpre mais as demandas padrões da cultura. Para além disso, outras cenas como: os momentos em que o senhor Lester parece a todo tempo perguntar às pessoas do seu convívio, se estas estão lhe compreendendo. Denunciando aí, possivelmente uma necessidade de ser visto e ouvido, em meio a uma cena de apagamento do seu próprio eu.
Podemos pensar, através da Psicanálise, que envelhecer é renunciar as posições narcísicas que se opõem aos desejos infantis: ser tudo, por todo o tempo, ser alvo de um investimento de amor e de reciprocidade. Também é se confrontar com a realidade e a aceitação desta e poder dar lugar à castração do sujeito sobre si mesmo. Porque, o que envelhece é o corpo. Em um dos comentários do filme feito por um dos produtores, se é dito: Malkovich nos mostra sua debilidade, nossa humanidade desesperada.
E o que a obra do Mal-estar na Civilização nos diz sobre o sofrimento humano, que para muitos é, o envelhecer? É que a força superior da natureza nos coloca um tempo e deixa recair sobre o sujeito os efeitos dele. Uma força cuja a fragilidade do nosso corpo e do psiquismo não suporta, e depois, a fraqueza na cultura diante das normas que regulam nossas relações.
E falando desse tempo de vida que se perde e das coisas que a acompanham, podemos ainda pensar sobre o luto. No envelhecimento, isso pode significar um processo psíquico doloroso, que implicaria na necessidade por elaborar o vínculo afetivo com os objetos perdidos e que o social valoriza: o corpo jovem acompanhado da beleza, o poder, o reconhecimento e todas as pessoas amadas que morrem. No texto, luto e melancolia, Freud diferencia luto entre luto normal e melancolia, onde o primeiro se caracteriza por uma reação natural pela perda de um objeto amado, cujo percurso feito pelo sujeito é marcado de sofrimento, enquanto lentamente vai se desligando dele.
Penso, que esta temática é sem dúvidas, de grande importância já que estabelece uma demanda possível para a Psicanálise na atualidade, uma vez que daqui há alguns anos, seremos alvos de uma época marcada por pessoas mais velhas do que pessoas jovens. Escrever sobre o Mal-estar na civilização, bem como utilizar de outras obras psicanalíticas que introduzam conceitos como o inconsciente e sua atemporalidade, as noções de corpo, o narcisismo e o luto e melancolia já nos parece um pouco suficiente para divagarmos mais sobre esse tema, que a meu ver se faz amplo e que se abre para muitas outras discussões. Se teremos tempo? Não sei, talvez tempo suficiente para o possível.
A única certeza que tenho até o momento, é de que todos nós envelheceremos, todos passaremos pelo tempo querendo ter mais tempo, mesmo sabendo que isso não vai acontecer. Mas o que fazer com isso?
¹Trabalho apresentado no evento: O Mal-Estar na Vida e na Arte: Um Enlace com o Cinema – Discussão sobre o filme: “Quero ser John Malkovich”.
²Fabrício de Souza Santos, Psicólogo (CRP 12/19139), associado AMPSC, Lattes ID: http://lattes.cnpq.br/6125699189695321 | Instagram: @fabricios.psi
20 de junho de 2020.
Mencionando o filme “Quero ser JOHN MALKOVICH” e relacionando aos tempos em que estamos vivenciando, compreende-se que o lugar do saber está no semblante da informação. Os sujeitos, diante da insatisfação na cultura, buscam satisfazer-se com saberes que conseguem suportar. O que é enunciado pelo outro, que opera uma máquina e espalha informações de maneira “fantasiosa” ou “horrorosa”, não importa. O importante é que o sujeito se sinta “amparado” e aliviado.
A maneira como o sujeito digere essas informações é individual, subjetivo. Portanto, o enfrentamento diante do horror pode ser encarado pelo sujeito de uma forma cômica ou de abstração destas informações através do negacionismo. Ambos são um modo leve de encarar a realidade tão intensa para o sujeito.
As fake news ligadas ao tragicômico ocupam um lugar de arte e de enunciado em que a verdade é repassada de uma maneira possível de ser aceita pelo sujeito. O mesmo necessita entender e escutar dentro de suas possibilidades psíquicas.
As informações estão expostas para a massa ter acesso. Ao mesmo tempo, o poder das informações está nas mídias e nas mãos da “elite” que as controlam. Sendo assim, pensa-se na possível alienação que a mídia pode provocar ao moldar as informações de forma mais “leve” para serem melhor aceitas pelos sujeitos. É o que, atualmente, pode-se observar nos episódios “Corona Alívio”, “Fique em casa com Marcelo Adnet”. Neste último, conta-se episódios trágicos de maneira cômica, envolvendo o presidente atual e a pandemia que vivenciamos. Na obra de Freud, “O mal estar na cultura”, são mencionadas as ameaças do sofrer do sujeito. Pode-se articular com o momento atual em que o sofrer é inevitável. O mundo externo e as informações estão imperando de forma devastadora e influenciando nas relações de modo a pôr o sujeito a trabalho para saber das suas limitações, ou seja, aponta-se o lugar da fala como uma possível saída para o enfrentamento atual.
Segundo Nietzsche, “A arte existe para que a verdade não nos destrua”. A essa menção, denota-se o quanto o sujeito precisa sair de sua realidade para poder suportar o seu mal estar na cultura. Malkovich seria essa arte, essa representação. O próprio Malkovich foi um ator. Deixava de ser ele, deixava de demonstrar sua verdade como sujeito do seu inconsciente. A concepção que as pessoas tinham de Malkovich, articula-se ao pai da horda, ou seja, o que goza de tudo e que tinha acesso ao que as pessoas imaginariam ter.
Ter acesso à verdade de Malkovich é ter acesso à própria verdade do sujeito, ou seja, estar na mente do ator é estar frente ao Outro imaginário. A ideia falsa de estar em um outro corpo, onde o sujeito poderia se satisfazer, cai por terra. Pois, pensando na vida de Malkovich, antes dos personagens ocuparem o corpo do ator, a mesma era monótona: ouvia suas peças teatrais deitado em um sofá através de um gravador. Precisou que esses personagens entrassem em cena para dar uma “guinada” em sua vida. Ou seja, todos queriam ser o que John representava no imaginário de cada um e não o que ele era.
As informações foram repassadas para as pessoas de maneira fantasiosa, vendendo felicidade de forma enganadora, pois quem ocupava o corpo de Malkovich e dava outro sentido à vida do próprio era a pessoa que aceitou estar em outra pele sendo ela própria. No entanto, desejar a vida do outro motivado pela sua própria insatisfação é o movimento do discurso histérico. Pois os sujeitos se apresentam em falta, no entanto, direcionam-se ao semblante de Malkovich como uma saída imaginária para obter a felicidade almejada. Neste sentido, por que não se pode pensar na questão reinvenção de si? Por que, em vez do sujeito se questionar sobre as suas insatisfações, se direciona para algo fantasioso? Esse gozo, no lugar da verdade sobre si, é característica do discurso histérico, como já cantava Cazuza, “mentiras sinceras me interessam”. Articulando com a era das fake news, o lugar do discurso histérico é a produção e elaboração de suas angústias para um possível enfrentamento diante das informações que sempre serão faltosas, pois a produção de uma verdade exclusiva não existe, assim como a felicidade única. E, o dar-se conta disso, é se colocar a trabalho para a busca da satisfação cada sujeito.
No caso de Craig, obteve sucesso no corpo de John, com suas marionetes. Nesse caso quem é o fake? O talento é de Craig, mas a imagem é de John. Essa ideia de completude que leva o sujeito ao impedimento de crescer psiquicamente, é demonstrado no filme. O objetivo de Craig não se sustentou até o final da trama por simplesmente buscar ter tudo e não querer abrir mão de nada. Há cada escolha há uma renúncia. O sentido de estar em falta foi o que faltou nesse personagem. O que acontece com as informações atuais não é diferente. O sujeito que não suporta estar em falta de informações ancora-se, sem hesitar, na informação que lhe é oferecida de forma a não desejar buscar. Qual a verdade mais aceita por mim? A mais engraçada? Trágica? Enfim, as informações, sendo elas fake ou não, estão aí para serem consumidas pelo sujeito, mesmo que elas sirvam para fantasiar uma realidade insuportável, é preciso sobreviver diante da guerra interna e externa.
¹Trabalho apresentado no evento: O Mal-Estar na Vida e na Arte: Um Enlace com o Cinema – Discussão sobre o filme: “Quero ser John Malkovich”.
²Ana Paula Mazzuco, Psicóloga (CRP 12/16260), associada AMPSC, Lattes ID: http://lattes.cnpq.br/7406316302402091. Instagram: @anapaulamazzuco04
20 de junho de 2020.
O trabalho como instrumento de repressão e controle pode ser constatado no filme “Quero ser John Malkovich” (1999), quando se apresentam as cenas que mostram os funcionários do local de ofício sendo obrigados a andar “corcundas”, pois era a regra necessária à adaptação na empresa. Outra questão é a linguagem. Na entrevista de emprego ao qual o personagem Craig Schwartz foi submetido, percebeu-se que as pessoas não se escutavam, produzindo uma forma de comunicação desconhecida.
Freud (2010) menciona que a cultura tem o papel de inserir o sujeito nas estruturas sociais, no entanto o indivíduo ao sentir-se pressionado escoará suas repressões em forma de energia libidinal deslocada para dentro ou para fora do corpo. Nesse sentido, as pulsões primitivas imperam, acarretando na agressividade inerente ao sujeito, que no filme é representada pela cena do surto psicótico de Craig, onde ele aprisiona a namorada numa gaiola junto com um macaco chimpanzé.
As comunicações de trabalho, segundo Debord (2003), perdem-se no momento em que os produtores interagem entre si a partir da alienação com o processo de produção, modificando-se o sentido das palavras e as expressões tornam-se indiretas. Isso é visível no filme, pois, dependendo da forma como Craig interpreta a linguagem de suas relações, a incompreensão funciona repressivamente e a fuga da realidade é um sintoma recorrente.
O espetáculo das artes propicia, em parte, a fuga da realidade física e as pulsões primitivas, quando oferece ao sujeito a perfeição e a beleza da felicidade, mas, no entanto, o separa da coletividade e das aspirações altruístas, pois a civilização, produzida para o indivíduo, não passa de mera superficialidade (DEBORD, 2003; FREUD, 2010). A consciência coletiva traz aos sujeitos experiências de vida e pulsões de vida complexas, que ultrapassam o âmbito do imaginário e agregam a camada real do psiquismo.
O Super-eu repressivo se instaura, nesse sentido, no momento em que o sentimento referente à fragmentação do Eu divide-se entre o desejo de ser reconhecido e representado espetacularmente (no filme o personagem literalmente entra no corpo do objeto desejado) e o contexto de trabalho controlador e individualizante, confundindo-o e pressionando à pulsão de morte. Nota-se que Craig não é escutado em sua dor e em alguns momentos até banalizado, inclusive sua namorada, vítima de agressão e desassistida.
Cabe ressaltar que as pulsões de autopreservação do Eu aparecem simbolizadas no macaco, ao instintivamente desatar os nós que prendiam sua parceira humana do enclausuramento, mas também libertando-a do sofrimento individual (FREUD, 2019). Nesse sentido, a liberdade são os laços coletivos, o que o filme metonimicamente sugestiona e traz como reflexão para a sociedade na qual vivemos. Se a civilização se mantém encarcerada e encarcerante, ela estagna e não se abrem as portas para o novo.
Portanto, em que medida o sistema de escravidão física ou psíquica impede esse enlaçamento? Bauman (2009) talvez citaria a sociedade do consumo ou o simulacro da vida, mas não há certeza...
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. A arte da vida. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
BEING John Malkovich. Direção de Spike Jonze. Roteiro de Charlie Kaufman. Estados Unidos: USA Films, 1999. BluRay (113 min).
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Projeto Periferia, 2003.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos. Tradução: Pedro Heliodoro Tavares. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
¹Trabalho apresentado no evento: O Mal-Estar na Vida e na Arte: Um Enlace com o Cinema – Discussão sobre o filme: “Quero ser John Malkovich”.
²Janete Figueiredo Dozól. Graduanda em Psicologia pela Universidade do Sul de Santa Catarina, sendo ex-monitora de duas disciplinas do referido curso e participante da AMPSC. Instagram: @janetedozol.